Semanas após os
ocorridos em Melogma e várias cidades a noroeste, a recém dupla viaja de
cidade em cidade pegando pequenos trabalhos, se esforçando ao máximo para serem
discretos, embora licans felinos não sejam tão comuns nas terras dos filhos do
deus Cura, bem como cavaleiros juramentados viajantes.
Amanhece no quarto
dia seguido em Ebene, uma discreta cidade pequena, cuja principal e única
atração é a Taverna do Vorme Dor-Minhoco, que não oferece nada além de meia
dúzia de mesas com cadeiras, cerveja, comida e aposentos.
Como muitas cidades
da região, é um local barato para que os trabalhadores das grandes fazendas
morem, e com o tempo, outros negócios foram surgindo para atender as demandas dessas
pessoas, como bancas de frutas, legumes e carnes e estábulos que criam, cuidam,
vendem e alugam montarias.
Ao puxar as cortinas
que separam sua cama do corredor que leva até o salão da taverna, Mejimeal
avista Andrian fazendo seu desjejum numa mesa, solitário como sempre, com o
olhar fixo no símbolo de metal prateado preso a uma fina corrente. Um formoso
garçom lhe traz uma bebida quente e lhe deseja bom dia enquanto o felino se
aproxima e faz o mesmo, mas o cavaleiro ignora ambos.
- Bom dia pra você também,
ééééé... – Insinua que não sabe o nome do garçom, o lican gato.
- Lorenzo, meu bom
jovem, muito prazer – Responde ao felino com o mesmo entusiasmo – Vai querer o
que para o café da manhã?
- Um peixe... se
tiver... e leite de vaca. Experimentei uma vez e achei bem bom. Acho que não
combina, mas vou experimentar mesmo assim! – Responde com um sorriso.
Com o semblante um
pouco enjoado, o garçom vai até a cozinha com certa pressa enquanto o garoto
magricela se ajeita na cadeira logo a frente do cavaleiro concentrado.
- Andrian... – Espera
alguns instantes – Andrian... – Espera novamente – Andrian acho que vou pedir
pra deixar reservado o quarto para o mês, já que a cidade é tranqüila, também
vou pedir para entregar as roupas que eu encomendei e já deixar acertado as
refeições de todos os dias, o que você acha? – Encara o cavaleiro quase subindo
na mesa.
- Sim, sim Meji, tudo
bem... – Responde sem tirar os olhos do seu símbolo sagrado.
- MAGIA!!! – Grita, o
gato, ao mesmo tempo em que bate com força com ambas as mãos sobre a mesa,
fazendo com que Andrian repentinamente fique em riste e com os olhos
arregalados – Você nem tava prestando atenção – Fala com entonação triste
enquanto se senta novamente.
- Poxa, Meji, me
perdoe. Estava perdido em minha mente com uma questão complicada, pode repetir?
- Não, não era nada.
Só queria chamar a atenção mesmo! Acha que peixe com leite de vaca combina?
Não, não é isso. O que poderia deixar você perdido? Você é todo grandão, cheio
de si, tem uma puta espadona de aço negro, afugenta bandidos, resgata pessoas
seqüestradas, ganha uns trocos por causa disso. Não, esquece essa última parte.
O que ta acontecendo?
- Olha Meji, eu sei
que nosso dinheiro está acabando, mas não devemos pegar qualquer trabalho...
- Claro que não! Justamente.
Precisamos pegar somente os trabalhos que nos paguem pra fazer!
- MEJI!
- Tá bom, foi mal.
Continua...
- Eu estava pedindo
ajuda de Cura. Eu não estou nem perto de pagar a minha dívida. Eu fiz algo
terrível e tenho certeza que devotar a minha vida a extinguir o mal do mundo é
só uma chance que tenho de redenção, nada além de uma chance...
- Tá aprendendo
comigo e falando mais que eu. Desembucha!
- Acordei mais cedo
hoje e havia um anúncio de trabalho, oferecendo cinqüenta peças de ouro. É
muito dinheiro, então achei que fosse perigoso e talvez aceitar a tarefa fosse,
além de uma necessidade nossa, uma forma de impedir que alguém se arriscasse só
por dinheiro...
- Não entendo, mas
respeito...
Eles fazem uma
pequena pausa quando o garçom traz o prato exótico de Meji. Andrian o
cumprimenta, e ele cumprimenta apenas o gato. O cavaleiro não disfarça o
semblante confuso e assim que o garçom toma certa distância ambos retomam a
conversa.
- Como eu ia dizendo
sobre o anúncio, não foi essa a minha dúvida. Eu fui até o endereço, falei com
o senhor que oferecia o trabalho. Ele se chama Arthur Cadana, é um fazendeiro
cuja propriedade está aqui na região. Ele não está contratando gente para
defender sua propriedade de bandidos ou escoltar cargas. Ele está contratando
um assassino. E quando eu perguntei detalhes do alvo ele me disse que só daria
caso eu aceitasse a missão.
- E então?
- Como assim e então?
- Quem é o alvo?
- Ora, eu não sei
quem é o alvo!
- Você não falou pra
ele que aceitava só pra saber quem era o alvo?
- E por que eu faria
isso?
- Andrian! Pra saber
quem era o alvo, ora bolas!!!
- Mas eu não iria
aceitar independente de quem fosse o alvo. Pessoas não devem morrer
simplesmente porque alguém paga por isso!
- Mas Andrian, pelo
amor de todos os deuses, você mesmo me disse, as pessoas mentem. Você tem noção
do quão difícil vai ser, agora, descobrir quem este filho da mãe quem que
morra?
- Eu devo mentir
então só porque os outros mentem também?
- Essa não é a
questão. A teimosia é a questão!
- São meus princípios
que você chama de teimosia?
- Não! A sua teimosia
eu chamo de teimosia! Seus princípios são uma coisa bem bacana aí que você tem
e te faz lutar vendado e de mãos atadas contra um monte de lixo que usa todas
as artimanhas contra você!
- Eu achei que você
estava entendendo alguma coisa depois de todo esse tempo viajando com você, mas
você ainda considera que fazer o bem é um defeito. Eu realmente estou
decepcionado com você, Meji.
- Imagina se soubesse
de tudo...
- O que você disse?
- Não! Escuta aqui,
fazer o bem não é um defeito, seu brutamontes teimoso! Mas você mesmo me
contou, quando me arrastou do lugar que seria meu funeral, que o mundo é cheio
de gente bosta que usa das coisas mais malignas pra ferrar com os outros. É
muito bom e muito bonito que você queira ser esse arauto que as pessoas olhem e
pensem, “nossa, parece que é o próprio deus agindo entre nós!”, mas acontece
que você não é nenhum deus! Você é bom, tem um bom coração, você luta bem pra
caramba, a sua espada é maneira, e é evidente que ainda existe algo mais que eu
não sei explicar ou não consigo enxergar, mas sempre que eu vejo você se
lançando de peito aberto no meio desses malditos eu te vejo se entregando como
presa pra eles. Mas tem uma coisa, quando você pula no meio de um monte de
bandido e eles te atacam pelas costas quando você manda eles se entregarem,
você ta vestindo uma armadura de metal que segura boa parte das estocadas.
Agora me explica uma coisa, quando você pular no meio de um monte de víboras
invisíveis mentindo pra você, te enganando, e fazendo você acreditar que é tão
bosta quanto eles, que armadura você vai vestir, ein?
Andrian respira
fundo, olha pra cima escorando no encosto da cadeira e após uns instantes se
levanta e para ao lado do gatinho, ainda afoito de tanto falar. O cavaleiro dá
uma espécie de abraço desajeitado do garoto e fala, disfarçando um bocado de
tristeza na voz:
- Você fala bastante
mesmo Meji, mas eu entendi que está preocupado comigo – Ele pousa a mão direita
fechada na mesa, ao lado da tigela de leite – Eu considero muito tudo isso que
me disse, e levo isso no meu coração – Puxa a mão de volta deixando seu símbolo
de Cura para o lican – Mas a armadura que visto nessas ocasiões é justamente
não me render ao vil como eles fazem, é ser diferente, mesmo que isso
signifique que estou vendado e de mãos atadas. Minha vida não está nas mãos
deles, e quando Cura decidir que for a minha hora, eu quero ir com honra.
Infelizmente isso não é possível ainda, e é isso que tenho tentado recuperar.
- Mas o que você...
- Guarde isso Meji.
Irá te proteger – Dando as costas, já quase na porta da taverna – Continue o
que começamos, você leva jeito pra herói.
- Continuar merda
nenhuma, vai se ferrar – Resmunga mordendo o peixe euforicamente enquanto toma
o leite de vaca, o pequeno felino, encarando o símbolo sagrado prateado do deus
Cura ao lado da tigela – Vai se ferrar você também Joko, fica enchendo a minha
cabeça quando os outros estão perto.
Com ouvidos atentos e
dentro de um manto azul marinho encardido, alguém observava a conversa do outro
lado da rua, seguindo o cavaleiro com os olhos.
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