sexta-feira, 22 de março de 2019

VI - AMARRAS E VENDAS


Semanas após os ocorridos em Melogma e várias cidades a noroeste, a recém dupla viaja de cidade em cidade pegando pequenos trabalhos, se esforçando ao máximo para serem discretos, embora licans felinos não sejam tão comuns nas terras dos filhos do deus Cura, bem como cavaleiros juramentados viajantes.
Amanhece no quarto dia seguido em Ebene, uma discreta cidade pequena, cuja principal e única atração é a Taverna do Vorme Dor-Minhoco, que não oferece nada além de meia dúzia de mesas com cadeiras, cerveja, comida e aposentos.
Como muitas cidades da região, é um local barato para que os trabalhadores das grandes fazendas morem, e com o tempo, outros negócios foram surgindo para atender as demandas dessas pessoas, como bancas de frutas, legumes e carnes e estábulos que criam, cuidam, vendem e alugam montarias.
Ao puxar as cortinas que separam sua cama do corredor que leva até o salão da taverna, Mejimeal avista Andrian fazendo seu desjejum numa mesa, solitário como sempre, com o olhar fixo no símbolo de metal prateado preso a uma fina corrente. Um formoso garçom lhe traz uma bebida quente e lhe deseja bom dia enquanto o felino se aproxima e faz o mesmo, mas o cavaleiro ignora ambos.
- Bom dia pra você também, ééééé... – Insinua que não sabe o nome do garçom, o lican gato.
- Lorenzo, meu bom jovem, muito prazer – Responde ao felino com o mesmo entusiasmo – Vai querer o que para o café da manhã?
- Um peixe... se tiver... e leite de vaca. Experimentei uma vez e achei bem bom. Acho que não combina, mas vou experimentar mesmo assim! – Responde com um sorriso.
Com o semblante um pouco enjoado, o garçom vai até a cozinha com certa pressa enquanto o garoto magricela se ajeita na cadeira logo a frente do cavaleiro concentrado.
- Andrian... – Espera alguns instantes – Andrian... – Espera novamente – Andrian acho que vou pedir pra deixar reservado o quarto para o mês, já que a cidade é tranqüila, também vou pedir para entregar as roupas que eu encomendei e já deixar acertado as refeições de todos os dias, o que você acha? – Encara o cavaleiro quase subindo na mesa.
- Sim, sim Meji, tudo bem... – Responde sem tirar os olhos do seu símbolo sagrado.
- MAGIA!!! – Grita, o gato, ao mesmo tempo em que bate com força com ambas as mãos sobre a mesa, fazendo com que Andrian repentinamente fique em riste e com os olhos arregalados – Você nem tava prestando atenção – Fala com entonação triste enquanto se senta novamente.
- Poxa, Meji, me perdoe. Estava perdido em minha mente com uma questão complicada, pode repetir?
- Não, não era nada. Só queria chamar a atenção mesmo! Acha que peixe com leite de vaca combina? Não, não é isso. O que poderia deixar você perdido? Você é todo grandão, cheio de si, tem uma puta espadona de aço negro, afugenta bandidos, resgata pessoas seqüestradas, ganha uns trocos por causa disso. Não, esquece essa última parte. O que ta acontecendo?
- Olha Meji, eu sei que nosso dinheiro está acabando, mas não devemos pegar qualquer trabalho...
- Claro que não! Justamente. Precisamos pegar somente os trabalhos que nos paguem pra fazer!
- MEJI!
- Tá bom, foi mal. Continua...
- Eu estava pedindo ajuda de Cura. Eu não estou nem perto de pagar a minha dívida. Eu fiz algo terrível e tenho certeza que devotar a minha vida a extinguir o mal do mundo é só uma chance que tenho de redenção, nada além de uma chance...
- Tá aprendendo comigo e falando mais que eu. Desembucha!
- Acordei mais cedo hoje e havia um anúncio de trabalho, oferecendo cinqüenta peças de ouro. É muito dinheiro, então achei que fosse perigoso e talvez aceitar a tarefa fosse, além de uma necessidade nossa, uma forma de impedir que alguém se arriscasse só por dinheiro...
- Não entendo, mas respeito...
Eles fazem uma pequena pausa quando o garçom traz o prato exótico de Meji. Andrian o cumprimenta, e ele cumprimenta apenas o gato. O cavaleiro não disfarça o semblante confuso e assim que o garçom toma certa distância ambos retomam a conversa.
- Como eu ia dizendo sobre o anúncio, não foi essa a minha dúvida. Eu fui até o endereço, falei com o senhor que oferecia o trabalho. Ele se chama Arthur Cadana, é um fazendeiro cuja propriedade está aqui na região. Ele não está contratando gente para defender sua propriedade de bandidos ou escoltar cargas. Ele está contratando um assassino. E quando eu perguntei detalhes do alvo ele me disse que só daria caso eu aceitasse a missão.
- E então?
- Como assim e então?
- Quem é o alvo?
- Ora, eu não sei quem é o alvo!
- Você não falou pra ele que aceitava só pra saber quem era o alvo?
- E por que eu faria isso?
- Andrian! Pra saber quem era o alvo, ora bolas!!!
- Mas eu não iria aceitar independente de quem fosse o alvo. Pessoas não devem morrer simplesmente porque alguém paga por isso!
- Mas Andrian, pelo amor de todos os deuses, você mesmo me disse, as pessoas mentem. Você tem noção do quão difícil vai ser, agora, descobrir quem este filho da mãe quem que morra?
- Eu devo mentir então só porque os outros mentem também?
- Essa não é a questão. A teimosia é a questão!
- São meus princípios que você chama de teimosia?
- Não! A sua teimosia eu chamo de teimosia! Seus princípios são uma coisa bem bacana aí que você tem e te faz lutar vendado e de mãos atadas contra um monte de lixo que usa todas as artimanhas contra você!
- Eu achei que você estava entendendo alguma coisa depois de todo esse tempo viajando com você, mas você ainda considera que fazer o bem é um defeito. Eu realmente estou decepcionado com você, Meji.
- Imagina se soubesse de tudo...
- O que você disse?
- Não! Escuta aqui, fazer o bem não é um defeito, seu brutamontes teimoso! Mas você mesmo me contou, quando me arrastou do lugar que seria meu funeral, que o mundo é cheio de gente bosta que usa das coisas mais malignas pra ferrar com os outros. É muito bom e muito bonito que você queira ser esse arauto que as pessoas olhem e pensem, “nossa, parece que é o próprio deus agindo entre nós!”, mas acontece que você não é nenhum deus! Você é bom, tem um bom coração, você luta bem pra caramba, a sua espada é maneira, e é evidente que ainda existe algo mais que eu não sei explicar ou não consigo enxergar, mas sempre que eu vejo você se lançando de peito aberto no meio desses malditos eu te vejo se entregando como presa pra eles. Mas tem uma coisa, quando você pula no meio de um monte de bandido e eles te atacam pelas costas quando você manda eles se entregarem, você ta vestindo uma armadura de metal que segura boa parte das estocadas. Agora me explica uma coisa, quando você pular no meio de um monte de víboras invisíveis mentindo pra você, te enganando, e fazendo você acreditar que é tão bosta quanto eles, que armadura você vai vestir, ein?
Andrian respira fundo, olha pra cima escorando no encosto da cadeira e após uns instantes se levanta e para ao lado do gatinho, ainda afoito de tanto falar. O cavaleiro dá uma espécie de abraço desajeitado do garoto e fala, disfarçando um bocado de tristeza na voz:
- Você fala bastante mesmo Meji, mas eu entendi que está preocupado comigo – Ele pousa a mão direita fechada na mesa, ao lado da tigela de leite – Eu considero muito tudo isso que me disse, e levo isso no meu coração – Puxa a mão de volta deixando seu símbolo de Cura para o lican – Mas a armadura que visto nessas ocasiões é justamente não me render ao vil como eles fazem, é ser diferente, mesmo que isso signifique que estou vendado e de mãos atadas. Minha vida não está nas mãos deles, e quando Cura decidir que for a minha hora, eu quero ir com honra. Infelizmente isso não é possível ainda, e é isso que tenho tentado recuperar.
- Mas o que você...
- Guarde isso Meji. Irá te proteger – Dando as costas, já quase na porta da taverna – Continue o que começamos, você leva jeito pra herói.
- Continuar merda nenhuma, vai se ferrar – Resmunga mordendo o peixe euforicamente enquanto toma o leite de vaca, o pequeno felino, encarando o símbolo sagrado prateado do deus Cura ao lado da tigela – Vai se ferrar você também Joko, fica enchendo a minha cabeça quando os outros estão perto.
Com ouvidos atentos e dentro de um manto azul marinho encardido, alguém observava a conversa do outro lado da rua, seguindo o cavaleiro com os olhos.



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