Com as mãos atadas e
amarrado em vastos chumaços de palha, Mejimeal é arrastado pela turba em cada
esquina da temerosa cidade de Melogma. Forçado a caminhar com o peso
descomunal, apanhando e sendo praguejado no caminho, o pequeno felino sente até
sua última gota de esperança sendo arrancada, junto dos maldizeres e do sangue
que escorre pelas pernas, fruto das inúmeras chicotadas desajeitadas que levara
pelo percurso.
Ao longo do dia a
turba só faz crescer, os ânimos se renovam e mesmo com o revezar das pessoas
que precisam satisfazer suas necessidades básicas, o lican gato tem a impressão
clara de que nenhum habitante será poupado de ver o seu sacrifício pelo bem
maior e pela prosperidade da fanática cidadela.
A noite é trazida por
uma brisa gelada e um denso crocitar de aves, mas embora a lua não brilhe o
suficiente para iluminar a praça e as ruas próximas, sobram cidadãos empunhando
seus instrumentos agrícolas e tochas com suas chamas crepitantes, concedendo
uma iluminação rubro carmesim à cena e garantindo um aspecto assustador às
silhuetas dançantes no chão.
Aos poucos os brados
insanos enfurecidos se abafam, tornando-se cochichos inquietos que reverberam
pelas ruas afora da praça central. No centro do círculo formado pelos bancos de
pedra, envolto numa quantidade exagerada de palha e amarrado com cordas e
correntes ao enorme poste de madeira já chamuscado de outras fogueiras, Meji
olha com pena para seus algozes, lembrando das perturbadoras palavras do
espírito ancestral, Joko.
Um vão se abre no
meio da turba, dando passagem ao alto, cabeludo, bem vestido e com trejeitos
exageradamente pomposos Abissal cujo nome da cidade homenageia, o escolhido
pelos cidadãos, produtores e servos, como o representante do Rei dentro da
cidade. O regente, Melog.
Com uma voz aguda, rouca
e arranhada, aos pigarros e pequenas tossidas, o regente dá início ao
pronunciamento oficial do início do evento chamado Fogueira dos Malditos:
- Muito boa noite,
povo da cidade de Melogma! É com imenso prazer e grande satisfação que venho
por meio desta oportunidade, na estrita atribuição das funções que a mim foram
conferidas, dar o primeiro passo rumo ao futuro. Em outros tempos já ouvi dizer
que nenhum bom agouro pode vir de uma vida sendo ceifada. Há tempos tenho
tomado isso como verdade e tomado cada vez mais cuidado com minhas ações e com os
resultados delas. No entanto, esforçar-me-ei na destruição de uma verdade
enganadora de minha mente, visto o bem comum. Elevar-vos-ei por meio de meu
esclarecimento e queimar-me-ei junto dos bruxos se preciso for, pois com a
minha verdade enganadora destruída, nada poderá ficar entre Melogma e seu
glorioso sucesso. Este não é apenas um demônio com a aparência de uma mistura
de um felino e um homem pequeno. É o símbolo do que acontece com o mal em nossa
terra. É a verdade enganadora de que através de uma morte não pode haver
progresso sendo destruída. Portanto, convidar-vos-ei, a acender a pira, juntos
como sempre, e a aproveitar os gritos do mal sofrendo, pois a derrota do mal, é
a vitória que tanto queremos e a garantia do progresso que tanto esperamos!!!
- Com qual autoridade
você acusa, dá a pena e executa um devoto do demônio, Abissal? - Rompendo os
urros e elogios efusivos da turba, interrompe a cerimônia com a grave voz de
trovão, Andrian Mocer, numa esquina atrás da turba, encarando a praça com sua
enorme espada de aço negro em punhos. Aos poucos as pessoas passam a falar cada
vez mais baixo, voltando seus rostos na direção do encorpado cavaleiro,
timidamente empunhando suas ferramentas e com os corações repletos de confusão
com doses de medo.
Pé ante pé, o
cavaleiro atravessa devagar a turba até uma distância próxima do centro da
praça, onde o galante regente aguarda disfarçando o incômodo. Sem suportar o
tilintar reverberante da armadura do cavaleiro em meio ao silêncio provocado
por sua presença, o regente se põe a discursar novamente:
- Ora, meu caro e
imponente seja lá quem for, eu sou Melog, o regente dessa cidade e a pessoa a
qual seu nome homenageia. Das terras de onde vêm isso não significa algo pra
você?
- Nas terras dos
filhos de Cura, caso não saiba, nem mesmo o Rei possui autoridade sobre as
vidas alheias – responde encarando o regente, sem alterar a velocidade dos
passos – Seria no mínimo constrangedor se eu precisasse lembrar ao regente
quais as suas funções.
- Ora seu insolente!
Vou precisar acionar as forças militares dessa cidade? Como ousa questionar as
atividades da coroa em exercício? Com que autoridade o faz? – Perdendo a calma,
esbraveja o abissal.
- Falo com a
autoridade da única pessoa nos arredores a empunhar uma arma de verdade – As
demais pessoas se afastam e algumas deixam suas ferramentas caírem – E se
conhece bem os rumores, por se tratar de uma lâmina de aço negro, deve entender
do que se trata.
- E daí que pode ser
um cavaleiro juramentado? E daí que pode ter conseguido essa porcaria matando
um? Isso não prova nada! Absolutamente nada! Onde estão os inquisidores? Ao
menos um inquisidor?
- É exatamente essa a
pergunta que eu faço, regente Melog, onde está ao menos um inquisidor? Existem
somente seis pessoas em toda Heldergaid que possuem o poder que parece
pressupor que tenha, e ainda assim, cada um deles referente a um assunto bem
específico – Chega à distância de um passo do regente, o cavaleiro juramentado,
quando acaba de falar.
- O que você acha que
está fazendo aqui, forasteiro? As coisas acontecem assim há anos, as pessoas
não suportam e nunca suportaram bruxaria e sempre resolveram seus problemas com
a fogueira, porque se intrometer no que não lhe diz despeito? – Um pouco mais
controlado, o abissal tenta convencer o cavaleiro.
- Os inquisidores
foram nomeados justamente para que equívocos como esse parassem de acontecer. Para
que diabruras irreparáveis cessassem. Ou o que pretende fazer, caso descubra
que a pessoa queimada era inocente? Qual o método que você utilizou para ter
tanta certeza que o rapaz é um bruxo, é o mal ou o enviado do demônio?
- OLHE PARA ELE,
FORASTEIRO!!! UMA MISTURA DE GATO COM GENTE!!! – Perdendo completamente a
paciência, Melog gesticula efusivamente apontando para o desanimado felino
amarrado ao poste.
- Se a aparência for
o critério, alteza, creio que as pessoas concordariam que há outra pessoa cuja
aparência lembra o que o vulgo crê ser o demônio.
As pessoas
discretamente voltam a pegar suas ferramentas e se dirigir para suas casas. Aos
poucos as tochas vão se apagando quando um relâmpago rasga o céu sobre suas
cabeças anunciando uma provável chuva, o que afugenta os demais. Ainda de pé e
sem ação, Melog olha para uma direção fixa como se enxergasse ainda mais além
enquanto Andrian guarda sua enorme espada de aço negro e começa a soltar o
garoto.
- Sabe forasteiro, as
pessoas precisavam me ver sem ação após o seu discurso ridículo. Elas precisam
ter certeza que você e essa aberração saíram daqui em segurança pra que eu não
precise começar do zero novamente, mas isso não acabou. Isso definitivamente
não acabou e eu vou me lembrar de você – no final da frase, os olhos de Melog
brilham num vermelho vivo, sua pele, outrora avermelhada se acinzenta e sua voz
fica grave e mais intensa – Será muito melhor para você se se lembrar do meu
nome.
Carregando o pequeno
felino nos ombros, aparentemente, sem fazer o menor esforço, o cavaleiro
responde o regente sem encará-lo:
- Esse povo não será
refém para sempre, e até o dia que eu voltar, você com certeza, já estará com o
meu nome na ponta da sua língua, Melog!
Amanhece mais uma
vez, o calor do sol incidindo diretamente no rosto do lican felino faz com que
desperte, sentado, escorado em uma árvore na beira da estrada. Curativos em
suas feridas, e nem sequer sinal de dor. Com uma rápida olhada ele vislumbra o
cavaleiro que o libertou, sentado ao pé da árvore ao lado, descascando uma
fruta com uma faca pequena.
- Moço fodão.
Obrigado. Eu meio que me sinto um idiota sabe. Contei tudo pra aquele lazarento
e ele me fodeu. Deve ser tudo mentira o lance da família, cachorro, tartaruga.
E eu não fiz nada pra aquele desgraçado – Enquanto fala, abusando de palavras
fortes, o gato tenta disfarçar as lágrimas que escorrem pelo seu rosto – Eu...
eu só tava fugindo porque... ah... mentiram pra minha família e tentaram me
matar... daí esse filho da... - Andrian o interrompe:
- Deixa eu te falar
uma coisa, criança. As pessoas... Elas mentem. E por mais que uma mentira às
vezes possa ser inofensiva, esse é o maior mal que uma pessoa pode fazer a
outra. E as pessoas fazem isso com frequência. É difícil não se abalar pela
mentira dos outros, pela traição, mas só depende de nós deixar que isso nos
afete. Se eu fosse te dar um conselho, bom, seria para que você confie como se
nunca tivesse sido traído e que seja confiável tanto quanto puder. Você vai
sofrer, é bem verdade, mas valerá a pena – Andrian parte a fruta ao meio e joga
metade pro felino, que a apanha no ar com uma facilidade impressionante – A
propósito, Andrian Mocer, prazer. Eu também estou fugindo.
- Nhéééél, Mejimeal –
Se espreguiça como não fazia há um bom tempo – mas pode me chamar de Meji... –
Com um esforço enorme, o pequeno não responde Joko e começa a pensar em como
conseguir todas as coisas que tinha em sua bolsa, sobretudo, sem que Andrian saiba.
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