sexta-feira, 15 de março de 2019

V - CONFRONTO


Com as mãos atadas e amarrado em vastos chumaços de palha, Mejimeal é arrastado pela turba em cada esquina da temerosa cidade de Melogma. Forçado a caminhar com o peso descomunal, apanhando e sendo praguejado no caminho, o pequeno felino sente até sua última gota de esperança sendo arrancada, junto dos maldizeres e do sangue que escorre pelas pernas, fruto das inúmeras chicotadas desajeitadas que levara pelo percurso.
Ao longo do dia a turba só faz crescer, os ânimos se renovam e mesmo com o revezar das pessoas que precisam satisfazer suas necessidades básicas, o lican gato tem a impressão clara de que nenhum habitante será poupado de ver o seu sacrifício pelo bem maior e pela prosperidade da fanática cidadela.
A noite é trazida por uma brisa gelada e um denso crocitar de aves, mas embora a lua não brilhe o suficiente para iluminar a praça e as ruas próximas, sobram cidadãos empunhando seus instrumentos agrícolas e tochas com suas chamas crepitantes, concedendo uma iluminação rubro carmesim à cena e garantindo um aspecto assustador às silhuetas dançantes no chão.
Aos poucos os brados insanos enfurecidos se abafam, tornando-se cochichos inquietos que reverberam pelas ruas afora da praça central. No centro do círculo formado pelos bancos de pedra, envolto numa quantidade exagerada de palha e amarrado com cordas e correntes ao enorme poste de madeira já chamuscado de outras fogueiras, Meji olha com pena para seus algozes, lembrando das perturbadoras palavras do espírito ancestral, Joko.
Um vão se abre no meio da turba, dando passagem ao alto, cabeludo, bem vestido e com trejeitos exageradamente pomposos Abissal cujo nome da cidade homenageia, o escolhido pelos cidadãos, produtores e servos, como o representante do Rei dentro da cidade. O regente, Melog.
Com uma voz aguda, rouca e arranhada, aos pigarros e pequenas tossidas, o regente dá início ao pronunciamento oficial do início do evento chamado Fogueira dos Malditos:
- Muito boa noite, povo da cidade de Melogma! É com imenso prazer e grande satisfação que venho por meio desta oportunidade, na estrita atribuição das funções que a mim foram conferidas, dar o primeiro passo rumo ao futuro. Em outros tempos já ouvi dizer que nenhum bom agouro pode vir de uma vida sendo ceifada. Há tempos tenho tomado isso como verdade e tomado cada vez mais cuidado com minhas ações e com os resultados delas. No entanto, esforçar-me-ei na destruição de uma verdade enganadora de minha mente, visto o bem comum. Elevar-vos-ei por meio de meu esclarecimento e queimar-me-ei junto dos bruxos se preciso for, pois com a minha verdade enganadora destruída, nada poderá ficar entre Melogma e seu glorioso sucesso. Este não é apenas um demônio com a aparência de uma mistura de um felino e um homem pequeno. É o símbolo do que acontece com o mal em nossa terra. É a verdade enganadora de que através de uma morte não pode haver progresso sendo destruída. Portanto, convidar-vos-ei, a acender a pira, juntos como sempre, e a aproveitar os gritos do mal sofrendo, pois a derrota do mal, é a vitória que tanto queremos e a garantia do progresso que tanto esperamos!!!
- Com qual autoridade você acusa, dá a pena e executa um devoto do demônio, Abissal? - Rompendo os urros e elogios efusivos da turba, interrompe a cerimônia com a grave voz de trovão, Andrian Mocer, numa esquina atrás da turba, encarando a praça com sua enorme espada de aço negro em punhos. Aos poucos as pessoas passam a falar cada vez mais baixo, voltando seus rostos na direção do encorpado cavaleiro, timidamente empunhando suas ferramentas e com os corações repletos de confusão com doses de medo.
Pé ante pé, o cavaleiro atravessa devagar a turba até uma distância próxima do centro da praça, onde o galante regente aguarda disfarçando o incômodo. Sem suportar o tilintar reverberante da armadura do cavaleiro em meio ao silêncio provocado por sua presença, o regente se põe a discursar novamente:
- Ora, meu caro e imponente seja lá quem for, eu sou Melog, o regente dessa cidade e a pessoa a qual seu nome homenageia. Das terras de onde vêm isso não significa algo pra você?
- Nas terras dos filhos de Cura, caso não saiba, nem mesmo o Rei possui autoridade sobre as vidas alheias – responde encarando o regente, sem alterar a velocidade dos passos – Seria no mínimo constrangedor se eu precisasse lembrar ao regente quais as suas funções.
- Ora seu insolente! Vou precisar acionar as forças militares dessa cidade? Como ousa questionar as atividades da coroa em exercício? Com que autoridade o faz? – Perdendo a calma, esbraveja o abissal.
- Falo com a autoridade da única pessoa nos arredores a empunhar uma arma de verdade – As demais pessoas se afastam e algumas deixam suas ferramentas caírem – E se conhece bem os rumores, por se tratar de uma lâmina de aço negro, deve entender do que se trata.
- E daí que pode ser um cavaleiro juramentado? E daí que pode ter conseguido essa porcaria matando um? Isso não prova nada! Absolutamente nada! Onde estão os inquisidores? Ao menos um inquisidor?
- É exatamente essa a pergunta que eu faço, regente Melog, onde está ao menos um inquisidor? Existem somente seis pessoas em toda Heldergaid que possuem o poder que parece pressupor que tenha, e ainda assim, cada um deles referente a um assunto bem específico – Chega à distância de um passo do regente, o cavaleiro juramentado, quando acaba de falar.
- O que você acha que está fazendo aqui, forasteiro? As coisas acontecem assim há anos, as pessoas não suportam e nunca suportaram bruxaria e sempre resolveram seus problemas com a fogueira, porque se intrometer no que não lhe diz despeito? – Um pouco mais controlado, o abissal tenta convencer o cavaleiro.
- Os inquisidores foram nomeados justamente para que equívocos como esse parassem de acontecer. Para que diabruras irreparáveis cessassem. Ou o que pretende fazer, caso descubra que a pessoa queimada era inocente? Qual o método que você utilizou para ter tanta certeza que o rapaz é um bruxo, é o mal ou o enviado do demônio?
- OLHE PARA ELE, FORASTEIRO!!! UMA MISTURA DE GATO COM GENTE!!! – Perdendo completamente a paciência, Melog gesticula efusivamente apontando para o desanimado felino amarrado ao poste.
- Se a aparência for o critério, alteza, creio que as pessoas concordariam que há outra pessoa cuja aparência lembra o que o vulgo crê ser o demônio.
As pessoas discretamente voltam a pegar suas ferramentas e se dirigir para suas casas. Aos poucos as tochas vão se apagando quando um relâmpago rasga o céu sobre suas cabeças anunciando uma provável chuva, o que afugenta os demais. Ainda de pé e sem ação, Melog olha para uma direção fixa como se enxergasse ainda mais além enquanto Andrian guarda sua enorme espada de aço negro e começa a soltar o garoto.
- Sabe forasteiro, as pessoas precisavam me ver sem ação após o seu discurso ridículo. Elas precisam ter certeza que você e essa aberração saíram daqui em segurança pra que eu não precise começar do zero novamente, mas isso não acabou. Isso definitivamente não acabou e eu vou me lembrar de você – no final da frase, os olhos de Melog brilham num vermelho vivo, sua pele, outrora avermelhada se acinzenta e sua voz fica grave e mais intensa – Será muito melhor para você se se lembrar do meu nome.
Carregando o pequeno felino nos ombros, aparentemente, sem fazer o menor esforço, o cavaleiro responde o regente sem encará-lo:
- Esse povo não será refém para sempre, e até o dia que eu voltar, você com certeza, já estará com o meu nome na ponta da sua língua, Melog!
Amanhece mais uma vez, o calor do sol incidindo diretamente no rosto do lican felino faz com que desperte, sentado, escorado em uma árvore na beira da estrada. Curativos em suas feridas, e nem sequer sinal de dor. Com uma rápida olhada ele vislumbra o cavaleiro que o libertou, sentado ao pé da árvore ao lado, descascando uma fruta com uma faca pequena.
- Moço fodão. Obrigado. Eu meio que me sinto um idiota sabe. Contei tudo pra aquele lazarento e ele me fodeu. Deve ser tudo mentira o lance da família, cachorro, tartaruga. E eu não fiz nada pra aquele desgraçado – Enquanto fala, abusando de palavras fortes, o gato tenta disfarçar as lágrimas que escorrem pelo seu rosto – Eu... eu só tava fugindo porque... ah... mentiram pra minha família e tentaram me matar... daí esse filho da... - Andrian o interrompe:
- Deixa eu te falar uma coisa, criança. As pessoas... Elas mentem. E por mais que uma mentira às vezes possa ser inofensiva, esse é o maior mal que uma pessoa pode fazer a outra. E as pessoas fazem isso com frequência. É difícil não se abalar pela mentira dos outros, pela traição, mas só depende de nós deixar que isso nos afete. Se eu fosse te dar um conselho, bom, seria para que você confie como se nunca tivesse sido traído e que seja confiável tanto quanto puder. Você vai sofrer, é bem verdade, mas valerá a pena – Andrian parte a fruta ao meio e joga metade pro felino, que a apanha no ar com uma facilidade impressionante – A propósito, Andrian Mocer, prazer. Eu também estou fugindo.
- Nhéééél, Mejimeal – Se espreguiça como não fazia há um bom tempo – mas pode me chamar de Meji... – Com um esforço enorme, o pequeno não responde Joko e começa a pensar em como conseguir todas as coisas que tinha em sua bolsa, sobretudo, sem que Andrian saiba.



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