Após semanas na estrada, rumo ao que
julgava no início ser um lugar seguro, o lican felino magricela coleciona
desconfiança ao longo do caminho após ouvir algumas conversas sobre
reviravoltas nas tribos das bordas dos reinos. Embora diversas vezes muito
tentado a se aproximar e iniciar uma conversa, o gatinho conseguiu ponderar
suficientemente em todas as vezes e achou mais viável não surgir em frente às
pessoas das quais acabara de furtar as provisões com algumas perguntas.
Adormece sobre um galho encoberto próximo a uma cidade cujo nome não conseguiu
ler corretamente em função da diferença do seu idioma nativo para o idioma do
reino dos filhos de Cura.
Com o mesmo capricho desde que Meji era
apenas um filhote, os raios de sol passam por entre as folhas que encobrem o
galho onde adormecera aquecendo incomodamente seu rosto e com o desequilíbrio e
mau jeito de costume, o pequeno felino se ajeita soltando seu miado e se
espreguiçando no meio da estrada.
Alguns passos cabisbaixos a frente e uma
carruagem de porte médio, com apenas dois cavalos puxando, o alcança. O
condutor, que viaja numa parte mais elevada da carruagem bem próxima dos
animais, remove seu chapéu de palha educadamente cumprimentando o pequeno
felino, que desajeitadamente responde ao cumprimento da forma mais educada que
consegue.
- Muito boa tarde, companheiro. Aceita
uma carona? – Com um sotaque bastante curioso, o rechonchudo condutor tenta um
início de conversa.
- Boa... dia... quer dizer bom...
tarde... Na verdade... Bom, eu adoraria uma carona, meus pés, e mãos, e costas,
e corpo todo estão até doendo do cansaço profundo de uma viagem longa e
desgastante, meu bom senhor, de bonito bigode, diga-se de passagem, mas
acontece que as pessoas normalmente não se dão muito bem com licans. Sabe,
pessoas da grande floresta com esses aspectos de bicho. Sobretudo gatos. Quanto
mais licans gato. E no caso eu sou um lican gato, e você é uma pessoa então,
muito provavelmente, você não gosta nem de lican, nem de gatos, nem de licans
gato, e eu sou um lican gato. Sou muito legal, é bem verdade, mas ainda assim,
sou um lican. E um gato... –Embala numa frase contínua, o pequeno lican, até
que o condutor se dá conta do que houve e decide interrompê-lo.
- Deixe de leseira, moço. Suba logo em
minha carroça e descanse suas pata até chegar na cidade po! – De forma
imperativa, o condutor, fazendo com que Mejimeal, discretamente, suba na
carruagem –Lander, prazer – Fala estendendo a mão direita para cumprimenta-lo
novamente.
- Mejimeal, mas pode chamar só de Meji –
Imita o gesto do condutor, o felino, ficando logo em seguida cabisbaixo – Era
assim que meus amigos me chamavam...
- E o que aconteceu? Por que não chamam
mais assim?
- Eles só não chamam mais... Eu meio
que, fugí sabe. Deu problema. Eu deixei todo mundo dormindo e fugi!
- Bruxaria? – Pergunta Lander, com os
olhos arregalados, ao lican.
- Que... Não... Planta... Cansaço...
Sono... Joko, acho que a gente se ferrou me ajuda Joko, caramba vamos morrer
socorr – Se apavora e começa a falar sozinho enquanto apalpa o corpo todo
procurando por algo até ser interrompido por um tapa nas costas, provavelmente
com menos força do que um ataque, mas não o bastante para os parâmetros de
Meji.
- Eu tô brincando maluco! – Interrompe
às risadas, o homem – Eu lá quero saber se você mexe com essas coisa ou não?
Não ferrando comigo ou com a minha carroça você que se dane... – E continua
rindo
Um pouco sem graça, o lican felino
retoma o fôlego e aos poucos se recompõe ao lado do condutor, que começa a
considerar o pequeno garoto como um amigo. Vendo a preocupação do garoto,
Lander o adverte:
- Mas uma coisa é bem verdade garoto,
evite conversar com o Joko, ou fazer a sua coisa mágica dentro da cidade que
vamos entrar. Eles é bem antigo e gosta de queimar bruxa. Pra eu falar coisa
assim é porque eles é chato mesmo. Toma cuidado tá. Eu sou um bocado conhecido
aqui, mas só tô inteiro porque sou esperto. Seja esperto também! – Pisca de
forma amigável encarando o gatinho assustado.
- Beleza amigão,
mas... Como você sabe do Joko? Você vê ele também? Joko, você vê o gordinho? –
Começa discretamente até se soltar um pouco mais e falar normalmente.
- Você que falou com
ele, Meji. Você não é o primeiro maluco pra quem eu dou carona não...
A conversa flui
amigável, Lander conta há quanto tempo trabalha como mercador somente na região
norte de Heldergaid devido ao perigo
dos ataques nas estradas do oeste e do sul, conta de sua família, sua esposa,
seus três filhos, dois cachorros, um gato e uma tartaruga, sua pequena casa e
uma fazenda razoável que plantam apenas para o próprio sustento.
Meji acompanha a
conversa contando de todos os costumes da tribo dos Cães e Gatos, do seu amigo
Gigaru, que nasceu no mesmo dia e na mesma hora que ele, de como ele gostava do
seu amigo e não fazia idéia disso enquanto podia vê-lo todos os dias e conta
também de Joko, o que sua família chama de amigo imaginário, mas que ele sabe
se tratar de um espírito ancestral tão sábio quanto o deus fera e tão poderoso
quanto os deuses dragões.
No fim da tarde, a
carruagem adentra a cidade que seu amigo Lander o anuncia, conforme o costume
dos visitantes e moradores, após contar toda a história do enriquecimento de
queda dos vários senhores da cidade, ainda que o garoto lican não tenha dado a
menor importância.
Se despedem desejando
boa sorte e Meji imediatamente se distrai com o aglomerado de pessoas curiosas
com sua aparência incomum, forçando interações e aproveitando das graças que o
felino não perde a oportunidade de fazer, ficando até o escurecer na mesma
praça, conversando com adultos curiosos e brincando com as crianças até que,
aos poucos, todos se recolhem aos seus domicílios.
Sem nenhum tostão e
sem companhia, Meji decide explorar a cidade, passeando em rua após rua,
observando as casas com base de pedras, paredes de madeira e telhados de palha.
Algumas com telhado de barro seco. A terra batida do chão já encardira seus
pelos dos pés, mesmo através das botas. Encantado com as diferentes construções
e com a forma como as ruas divergem da estrada pela qual viajou mais de dez
dias seguidos, o pequeno lican felino adormece num grande cesto de feno num
estábulo aberto próximo de duas casas bem grandes.
Um ardor peculiar em
seu rosto o desperta, mas não o agradável ardor do sol matinal que parecia
esquivar caprichosamente entre as folhas quando dormia nos galhos. Mejimeal
fora acordado com um tapa de mão aberta de uma senhora de meia idade, cabelos
loiros, quase brancos, e pele um pouco acinzentada. O pequeno felino já estava
amarrado, mãos e pés, e cercado por uma multidão que bradava por justiça.
Atordoado, tentava se
lembrar do sonho onde Joko o anunciava que uma cidade inteira findaria em
cinzas caso fosse levado à fogueira. Diante do nervosismo, das vagas memórias e
dos ânimos da plebe, o gato não consegue sequer pensar num bom início para um
argumento sem que pareça ma ameaça.
No meio da turba,
Meji reconhece Lander e grita por ajuda desesperadamente, tomando a atenção de
algumas pessoas que pareciam indiferentes aos manifestos desesperados dos
acusadores. Após algumas tentativas, e quando a voz do jovem lican já começava
falhar, Lander muda o trajeto e passa a caminhar ao encontro do felino. Baixo o
suficiente para gerar dúvida aos mais afastados, mas alto o suficiente para que
chegue ao seu amigo, Mejimeal conta:
- Lander, socorro,
ajuda, deuses, foco, socorro. Joko, ele me falou, fogo cinza, pessoas, arroz.
Não, arroz não. Calma Meji, calma Meji, se você se desesperar você vai morrer.
Se não se desesperar vai morrer também, mas pelo menos não estará desesperado.
Me ajuda Lander, o Joko me disse, que se eu for pra fogueira a cidade vai sumir
no fogo. Vai queimar. Todo mundo, por favor Lander, ajuda eu, ajuda as pessoas...
– Desesperado, vai se acalmando enquanto fala ao passo que Lander se aproxima e
quando Lander fica frente a frente do lican felino, todas as pessoas se
silenciam, Lander retira uma mordaça do bolso e amarra na boca do felino.
- A taverna, meus
caros, foi apenas um aviso. Esse bruxo das terras dos filhos de Fera veio nos trazer desgraça e
degradação. Nossas colheitas ruins, nossa cerveja azeda e nossa carne que
apodrece mesmo com sal, são apenas agouros anunciando a chegada do mal. E o mal
veio de forma clara, nos desafiando, na forma de um demônio, meio gato, meio
gente – Sem acreditar no que ocorre, Meji desiste de lutar ou de convencer a
turba, amolecendo os braços e pernas, deixando também as lágrimas escorrerem
pelo seu rosto combalido, ao passo que Lander se empolga e passa a gesticular
enquanto discursa – Por isso, povo de Melogma, eu os convido a dar o primeiro
passo rumo a um futuro próspero. Eu os convido à fogueira dos malditos hoje à
noite! Nenhum bruxo jamais atrapalhará nosso progresso novamente!
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