Numa encruzilhada na estrada oeste de Ebene, Andrian
aguarda sentado ao pé de uma árvore seca de tronco largo, iluminado pela lua e
algumas estrelas, sem muito esforço para se esconder, ainda que sem uma
fogueira acesa.
Poucas pessoas passaram durante o dia e nenhuma delas no
caminho que leva ao casarão do Senhor Cadana, o que pareceu muito estranho
visto a polpuda recompensa por um trabalho, aparentemente, rápido.
A noite, no entanto, o cavaleiro auto juramentado observou
dois grupos seguindo o caminho do casarão, um composto por seis membros e outro
composto por quatro. Nenhum deles o chamara muito a atenção e cada um deles o
fitou por tempo suficiente para parecer incômodo. A prosperidade da noite
passou a depender do retorno de qualquer um desses membros.
Um sujeito vestindo um manto azul marinho encardido se
aproxima do cavaleiro vagarosamente, fazendo questão de ser notado, ainda que
com o rosto coberto pela sombra de seu capuz.
- Boa noite cavalheiro! – Cumprimenta com voz senil
suavemente rouca, a pessoa de manto azul.
- Boa noite senhor – Responde sem se levantar, Andrian.
- Importa-se? – Questiona apontando para a base do tronco
logo ao lado de Andrian.
- Por favor – Responde enquanto remove sua mochila e sua
bainha e a aloca do outro lado.
- Noite quente, não é mesmo? – Comenta enquanto se ajeita
ao lado do cavaleiro, erguendo um pouco a base do manto com ambas as
mãos–Difícil ficar dentro de casa, perigoso ficar fora dela!
- Não vejo perigo pra uma pessoa como eu, já o senhor
deveria estar preocupado, não?
- Creio estar bem acompanhado agora.
- Porque pensa assim?
- Vai me dizer que permitiria que algum mal me ocorresse?
- Responde uma pergunta com outra pergunta?
- Isso mostra sabedoria, meu jovem, mas se ficarmos
presos nisso, ficaremos assim para sempre.
- O que você quer?
- A questão, na verdade, é o que você quer!
- Com todo respeito, meu senhor, mas eu não atravessei
uma estrada solicitando sentar ao seu lado e começar uma conversa sem sentido.
Não tenho interesse em compartilhar quais as minhas intenções e a menos que o
queira, sugiro que se vá! – Engrossa, Andrian, repousando o cotovelo sobre o
joelho dobrado enquanto encara o capuz, sem conseguir ver nenhum detalhe do
rosto além de uma média barba branca malcuidada.
- Realmente, meu rapaz, talvez eu não seja muito bom com
isso e deva melhorar meus métodos. Acredito ter começado isso errado e um
cumprimento respeitoso seguido de conversa fiada não seja lá a melhor das
estratégias – Com ambas as mãos, puxa o capuz do manto para traz revelando um
rosto magro e senil, de cabelos brancos curtos e muito enrolados e olhos
castanhos –Me chamo Gesh, sou um velho sem muita perspectiva e com uma tarefa
grandiosa a ser feita. Preciso de ajuda devido às claras limitações de minha
condição e vejo em você alguma coisa positiva que possa nos ajudar a seguir o
caminho correto.
- Não!
- Mas, eu nem te contei – Com um misto de espanto e
desânimo, o senhor retoma.
- Eu simplesmente não quero saber do que se trata e você
pode colocar um anuncio na taverna, como todos os empregadores o fazem!
- Mas meu bom rapaz, eu não tenho recompensa a oferecer,
não posso confiar esse trabalho a qualquer um, além de ser muito perigoso...
- Você está realmente tentando me convencer a aceitar?
- Deixe-me retomar... Perigoso aos demais, não pra você!
Eu vi como soube lidar com os goblins na estrada... e como enfrentou sozinho
três arautos de Urugarth...
- Espera aí! – Se levanta bruscamente segurando sua
bainha com a mão esquerda – Há quanto tempo está me seguindo?
- Desde que se encontrou com o gato – Com os braços ao
lado do corpo, demonstrando intenção de se levantar, ainda que o espaço entre
eles não fizesse com que fosse possível.
- O que tem o gato? – Ajoelha na frente do velho,
segurando seu pescoço com a mão direita.
- Olha... Andrian... – Em meio a tosses e respiradas
difíceis, batendo de leve no braço do rapaz para que afrouxasse um pouco a
pegada – A história é um pouco complexa e talvez leve mais tempo do que temos
disponível para que eu lhe conte. Por hora só temos que sair daqui!
- Quem disse que vamos sair daqui? Quem disse que não
temos tempo? Não estou fazendo nada! Temos todo o tempo do mundo!
- Não Andrian, não temos! – Com o semblante, mais sério –
Eu já tive essa conversa com você tantas vezes que já perdi as contas e agora
já perdi a paciência. Foda-se se isso não vai dar certo, mas eu cansei de
tentar convencê-lo sem tocar nessa parte do assunto – O cavaleiro parece
confuso e se levanta devagar, dando um passo pra trás enquanto Gesh se levanta,
ainda mais vagarosamente – Você morre Andrian!
- O que? – A bainha enorme cai com a fraqueza
incontrolável nos dedos. Andrian podia sentir e as palavras apenas tornavam
aquilo mais real.
- Meji não vem te ajudar dessa vez, ele ficou naquela
espelunca. Arthur contratou todos os sicários pra matar você. O primeiro
trabalho era só uma isca, que você mordeu, aliás. E por fim, ele só fez isso
porque teme você. Por onde passam vocês adquirem fama por prenderem bandidos,
libertarem escravos e coisas assim, e ele teme perder sua mão de obra – Ao
passo que Andrian vai se afastando, Gesh acompanha os passos seguindo em sua
direção – E você sabe de tudo isso porque de alguma forma já era capaz de
sentir, mas não acreditava!
- C... c... como? Como você sabe disso tudo?
- Andrian, não existe uma versão resumida do que sei,
posso e preciso fazer, eu só descobri que não consigo fazer isso sozinho. Eu
estudo, muito, mesmo e foi aqui que encontrei quem pudesse me ajudar. Não há
outras pessoas com quem eu possa contar. Eu preciso que você ao menos
considere.
- De onde você é mesmo?
- A pergunta certa não é essa, meu caro, mas de quando!
- Você viaja através do tempo?
- É uma boa forma de dizer, mas é um pouco mais
complicado que isso!
- Então porque você não voltou ao início de tudo, ou não
ameaçou matar as pessoas antes que crescessem pra conseguir o que quer? Que
poder é esse? – Como há muito não ocorria, Andrian se entrega ao medo, enchendo
os olhos.
- Não é evidente, rapaz? Eu não quero! – Abre os braços,
deixando que seu manto se abra, revelando apenas um homem comum, em trajes
mundanos, sandálias surradas e uma bolsa de pano.
- E o medo? Porque eu sinto medo? Faz tempo que não sinto
isso! O que está acontecendo?
- É o que eu chamo de eco. Você está chegando na época em
que várias versões de você deixam de existir. Todas as que conheço, pelo menos.
Vai passar. Eu já tive isso, mais de uma vez, aliás...
- Versões de mim? Que loucura é essa? Você conjurou algo
pra me deixar com medo e criou essa história toda? – Dá a volta no senhor e
pega sua bainha de volta, trêmulo.
- Andrian, seria muito mais fácil dizer que vim te salvar
ou algo do tipo, mas o fato é que basta você evitar esse embate pra continuar a
sua vida. Sou eu quem precisa de ajuda.
As luzes das tochas passaram a iluminar os arredores do
casarão, e o grande grupo começa a caminhar rumo à estrada. Na distância que
estão de Gesh e Andrian, só é possível notar as armas de haste, lanças longas e
alabardas, o que compõe o grande grupo que vem à frente. Logo atrás, três deles
sem armas aparentes.
- Senhor Andrian, você está usando um monte de lata presa
no seu corpo e minha idade, sobretudo meus joelhos, não me permitem correr como
se tivesse a sua idade. Se pretende me ajudar, ou melhor, se pretende viver e
decidir depois, precisamos fugir agora! – Juntando as coisas enquanto argumenta
desesperado, o homem de manto azul.
Desembainhando sua enorme espada de aço negro, o
cavaleiro toma o rumo do centro da estrada em oração, fazendo sua armadura
refletir de forma sobrenatural a luz da lua, e ao fim da prece, encara o velho
ainda com lágrimas nos olhos:
- Se precisa de minha ajuda e espera que eu fuja, talvez
não me conheça o suficiente, Gesh. Se pode me ajudar de alguma forma além de
torcida, eu aceitarei! – Encara a estrada à sua frente acompanhando cada passo
do grupo de sicários de Arthur Cadana.
Andrian sente um empurrão de leve em suas costas e no
instante seguinte, ao olhar para sua própria espada, ela aparenta translúcida,
bem como seus braços e o próprio corpo. O cavaleiro se vira procurando pelo
homem de manto azulado e também não o encontra a sua volta.
Ao procurar na beira da estrada na árvore seca, o
cavaleiro observa, por trás dos galhos mais altos, um rabo felino acinzentado o
qual é bem familiarizado no mesmo instante que uma voz entra na sua mente sem
passar por seus ouvidos.
- Olha aqui seu brutamontes teimoso filho da mãe! Brigue
comigo à vontade quando quiser, pelo motivo que quiser e quantas vezes quiser,
mas esteja vivo pra isso. Eu tô escondido, você e o véio ninguém pode ver.
Deixa esse povo passar que a gente conversa depois. Nós quatro!