sexta-feira, 29 de março de 2019

VII - ECO


Numa encruzilhada na estrada oeste de Ebene, Andrian aguarda sentado ao pé de uma árvore seca de tronco largo, iluminado pela lua e algumas estrelas, sem muito esforço para se esconder, ainda que sem uma fogueira acesa.
Poucas pessoas passaram durante o dia e nenhuma delas no caminho que leva ao casarão do Senhor Cadana, o que pareceu muito estranho visto a polpuda recompensa por um trabalho, aparentemente, rápido.
A noite, no entanto, o cavaleiro auto juramentado observou dois grupos seguindo o caminho do casarão, um composto por seis membros e outro composto por quatro. Nenhum deles o chamara muito a atenção e cada um deles o fitou por tempo suficiente para parecer incômodo. A prosperidade da noite passou a depender do retorno de qualquer um desses membros.
Um sujeito vestindo um manto azul marinho encardido se aproxima do cavaleiro vagarosamente, fazendo questão de ser notado, ainda que com o rosto coberto pela sombra de seu capuz.
- Boa noite cavalheiro! – Cumprimenta com voz senil suavemente rouca, a pessoa de manto azul.
- Boa noite senhor – Responde sem se levantar, Andrian.
- Importa-se? – Questiona apontando para a base do tronco logo ao lado de Andrian.
- Por favor – Responde enquanto remove sua mochila e sua bainha e a aloca do outro lado.
- Noite quente, não é mesmo? – Comenta enquanto se ajeita ao lado do cavaleiro, erguendo um pouco a base do manto com ambas as mãos–Difícil ficar dentro de casa, perigoso ficar fora dela!
- Não vejo perigo pra uma pessoa como eu, já o senhor deveria estar preocupado, não?
- Creio estar bem acompanhado agora.
- Porque pensa assim?
- Vai me dizer que permitiria que algum mal me ocorresse?
- Responde uma pergunta com outra pergunta?
- Isso mostra sabedoria, meu jovem, mas se ficarmos presos nisso, ficaremos assim para sempre.
- O que você quer?
- A questão, na verdade, é o que você quer!
- Com todo respeito, meu senhor, mas eu não atravessei uma estrada solicitando sentar ao seu lado e começar uma conversa sem sentido. Não tenho interesse em compartilhar quais as minhas intenções e a menos que o queira, sugiro que se vá! – Engrossa, Andrian, repousando o cotovelo sobre o joelho dobrado enquanto encara o capuz, sem conseguir ver nenhum detalhe do rosto além de uma média barba branca malcuidada.
- Realmente, meu rapaz, talvez eu não seja muito bom com isso e deva melhorar meus métodos. Acredito ter começado isso errado e um cumprimento respeitoso seguido de conversa fiada não seja lá a melhor das estratégias – Com ambas as mãos, puxa o capuz do manto para traz revelando um rosto magro e senil, de cabelos brancos curtos e muito enrolados e olhos castanhos –Me chamo Gesh, sou um velho sem muita perspectiva e com uma tarefa grandiosa a ser feita. Preciso de ajuda devido às claras limitações de minha condição e vejo em você alguma coisa positiva que possa nos ajudar a seguir o caminho correto.
- Não!
- Mas, eu nem te contei – Com um misto de espanto e desânimo, o senhor retoma.
- Eu simplesmente não quero saber do que se trata e você pode colocar um anuncio na taverna, como todos os empregadores o fazem!
- Mas meu bom rapaz, eu não tenho recompensa a oferecer, não posso confiar esse trabalho a qualquer um, além de ser muito perigoso...
- Você está realmente tentando me convencer a aceitar?
- Deixe-me retomar... Perigoso aos demais, não pra você! Eu vi como soube lidar com os goblins na estrada... e como enfrentou sozinho três arautos de Urugarth...
- Espera aí! – Se levanta bruscamente segurando sua bainha com a mão esquerda – Há quanto tempo está me seguindo?
- Desde que se encontrou com o gato – Com os braços ao lado do corpo, demonstrando intenção de se levantar, ainda que o espaço entre eles não fizesse com que fosse possível.
- O que tem o gato? – Ajoelha na frente do velho, segurando seu pescoço com a mão direita.
- Olha... Andrian... – Em meio a tosses e respiradas difíceis, batendo de leve no braço do rapaz para que afrouxasse um pouco a pegada – A história é um pouco complexa e talvez leve mais tempo do que temos disponível para que eu lhe conte. Por hora só temos que sair daqui!
- Quem disse que vamos sair daqui? Quem disse que não temos tempo? Não estou fazendo nada! Temos todo o tempo do mundo!
- Não Andrian, não temos! – Com o semblante, mais sério – Eu já tive essa conversa com você tantas vezes que já perdi as contas e agora já perdi a paciência. Foda-se se isso não vai dar certo, mas eu cansei de tentar convencê-lo sem tocar nessa parte do assunto – O cavaleiro parece confuso e se levanta devagar, dando um passo pra trás enquanto Gesh se levanta, ainda mais vagarosamente – Você morre Andrian!
- O que? – A bainha enorme cai com a fraqueza incontrolável nos dedos. Andrian podia sentir e as palavras apenas tornavam aquilo mais real.
- Meji não vem te ajudar dessa vez, ele ficou naquela espelunca. Arthur contratou todos os sicários pra matar você. O primeiro trabalho era só uma isca, que você mordeu, aliás. E por fim, ele só fez isso porque teme você. Por onde passam vocês adquirem fama por prenderem bandidos, libertarem escravos e coisas assim, e ele teme perder sua mão de obra – Ao passo que Andrian vai se afastando, Gesh acompanha os passos seguindo em sua direção – E você sabe de tudo isso porque de alguma forma já era capaz de sentir, mas não acreditava!
- C... c... como? Como você sabe disso tudo?
- Andrian, não existe uma versão resumida do que sei, posso e preciso fazer, eu só descobri que não consigo fazer isso sozinho. Eu estudo, muito, mesmo e foi aqui que encontrei quem pudesse me ajudar. Não há outras pessoas com quem eu possa contar. Eu preciso que você ao menos considere.
- De onde você é mesmo?
- A pergunta certa não é essa, meu caro, mas de quando!
- Você viaja através do tempo?
- É uma boa forma de dizer, mas é um pouco mais complicado que isso!
- Então porque você não voltou ao início de tudo, ou não ameaçou matar as pessoas antes que crescessem pra conseguir o que quer? Que poder é esse? – Como há muito não ocorria, Andrian se entrega ao medo, enchendo os olhos.
- Não é evidente, rapaz? Eu não quero! – Abre os braços, deixando que seu manto se abra, revelando apenas um homem comum, em trajes mundanos, sandálias surradas e uma bolsa de pano.
- E o medo? Porque eu sinto medo? Faz tempo que não sinto isso! O que está acontecendo?
- É o que eu chamo de eco. Você está chegando na época em que várias versões de você deixam de existir. Todas as que conheço, pelo menos. Vai passar. Eu já tive isso, mais de uma vez, aliás...
- Versões de mim? Que loucura é essa? Você conjurou algo pra me deixar com medo e criou essa história toda? – Dá a volta no senhor e pega sua bainha de volta, trêmulo.
- Andrian, seria muito mais fácil dizer que vim te salvar ou algo do tipo, mas o fato é que basta você evitar esse embate pra continuar a sua vida. Sou eu quem precisa de ajuda.
As luzes das tochas passaram a iluminar os arredores do casarão, e o grande grupo começa a caminhar rumo à estrada. Na distância que estão de Gesh e Andrian, só é possível notar as armas de haste, lanças longas e alabardas, o que compõe o grande grupo que vem à frente. Logo atrás, três deles sem armas aparentes.
- Senhor Andrian, você está usando um monte de lata presa no seu corpo e minha idade, sobretudo meus joelhos, não me permitem correr como se tivesse a sua idade. Se pretende me ajudar, ou melhor, se pretende viver e decidir depois, precisamos fugir agora! – Juntando as coisas enquanto argumenta desesperado, o homem de manto azul.
Desembainhando sua enorme espada de aço negro, o cavaleiro toma o rumo do centro da estrada em oração, fazendo sua armadura refletir de forma sobrenatural a luz da lua, e ao fim da prece, encara o velho ainda com lágrimas nos olhos:
- Se precisa de minha ajuda e espera que eu fuja, talvez não me conheça o suficiente, Gesh. Se pode me ajudar de alguma forma além de torcida, eu aceitarei! – Encara a estrada à sua frente acompanhando cada passo do grupo de sicários de Arthur Cadana.
Andrian sente um empurrão de leve em suas costas e no instante seguinte, ao olhar para sua própria espada, ela aparenta translúcida, bem como seus braços e o próprio corpo. O cavaleiro se vira procurando pelo homem de manto azulado e também não o encontra a sua volta.
Ao procurar na beira da estrada na árvore seca, o cavaleiro observa, por trás dos galhos mais altos, um rabo felino acinzentado o qual é bem familiarizado no mesmo instante que uma voz entra na sua mente sem passar por seus ouvidos.
- Olha aqui seu brutamontes teimoso filho da mãe! Brigue comigo à vontade quando quiser, pelo motivo que quiser e quantas vezes quiser, mas esteja vivo pra isso. Eu tô escondido, você e o véio ninguém pode ver. Deixa esse povo passar que a gente conversa depois. Nós quatro!

sexta-feira, 22 de março de 2019

VI - AMARRAS E VENDAS


Semanas após os ocorridos em Melogma e várias cidades a noroeste, a recém dupla viaja de cidade em cidade pegando pequenos trabalhos, se esforçando ao máximo para serem discretos, embora licans felinos não sejam tão comuns nas terras dos filhos do deus Cura, bem como cavaleiros juramentados viajantes.
Amanhece no quarto dia seguido em Ebene, uma discreta cidade pequena, cuja principal e única atração é a Taverna do Vorme Dor-Minhoco, que não oferece nada além de meia dúzia de mesas com cadeiras, cerveja, comida e aposentos.
Como muitas cidades da região, é um local barato para que os trabalhadores das grandes fazendas morem, e com o tempo, outros negócios foram surgindo para atender as demandas dessas pessoas, como bancas de frutas, legumes e carnes e estábulos que criam, cuidam, vendem e alugam montarias.
Ao puxar as cortinas que separam sua cama do corredor que leva até o salão da taverna, Mejimeal avista Andrian fazendo seu desjejum numa mesa, solitário como sempre, com o olhar fixo no símbolo de metal prateado preso a uma fina corrente. Um formoso garçom lhe traz uma bebida quente e lhe deseja bom dia enquanto o felino se aproxima e faz o mesmo, mas o cavaleiro ignora ambos.
- Bom dia pra você também, ééééé... – Insinua que não sabe o nome do garçom, o lican gato.
- Lorenzo, meu bom jovem, muito prazer – Responde ao felino com o mesmo entusiasmo – Vai querer o que para o café da manhã?
- Um peixe... se tiver... e leite de vaca. Experimentei uma vez e achei bem bom. Acho que não combina, mas vou experimentar mesmo assim! – Responde com um sorriso.
Com o semblante um pouco enjoado, o garçom vai até a cozinha com certa pressa enquanto o garoto magricela se ajeita na cadeira logo a frente do cavaleiro concentrado.
- Andrian... – Espera alguns instantes – Andrian... – Espera novamente – Andrian acho que vou pedir pra deixar reservado o quarto para o mês, já que a cidade é tranqüila, também vou pedir para entregar as roupas que eu encomendei e já deixar acertado as refeições de todos os dias, o que você acha? – Encara o cavaleiro quase subindo na mesa.
- Sim, sim Meji, tudo bem... – Responde sem tirar os olhos do seu símbolo sagrado.
- MAGIA!!! – Grita, o gato, ao mesmo tempo em que bate com força com ambas as mãos sobre a mesa, fazendo com que Andrian repentinamente fique em riste e com os olhos arregalados – Você nem tava prestando atenção – Fala com entonação triste enquanto se senta novamente.
- Poxa, Meji, me perdoe. Estava perdido em minha mente com uma questão complicada, pode repetir?
- Não, não era nada. Só queria chamar a atenção mesmo! Acha que peixe com leite de vaca combina? Não, não é isso. O que poderia deixar você perdido? Você é todo grandão, cheio de si, tem uma puta espadona de aço negro, afugenta bandidos, resgata pessoas seqüestradas, ganha uns trocos por causa disso. Não, esquece essa última parte. O que ta acontecendo?
- Olha Meji, eu sei que nosso dinheiro está acabando, mas não devemos pegar qualquer trabalho...
- Claro que não! Justamente. Precisamos pegar somente os trabalhos que nos paguem pra fazer!
- MEJI!
- Tá bom, foi mal. Continua...
- Eu estava pedindo ajuda de Cura. Eu não estou nem perto de pagar a minha dívida. Eu fiz algo terrível e tenho certeza que devotar a minha vida a extinguir o mal do mundo é só uma chance que tenho de redenção, nada além de uma chance...
- Tá aprendendo comigo e falando mais que eu. Desembucha!
- Acordei mais cedo hoje e havia um anúncio de trabalho, oferecendo cinqüenta peças de ouro. É muito dinheiro, então achei que fosse perigoso e talvez aceitar a tarefa fosse, além de uma necessidade nossa, uma forma de impedir que alguém se arriscasse só por dinheiro...
- Não entendo, mas respeito...
Eles fazem uma pequena pausa quando o garçom traz o prato exótico de Meji. Andrian o cumprimenta, e ele cumprimenta apenas o gato. O cavaleiro não disfarça o semblante confuso e assim que o garçom toma certa distância ambos retomam a conversa.
- Como eu ia dizendo sobre o anúncio, não foi essa a minha dúvida. Eu fui até o endereço, falei com o senhor que oferecia o trabalho. Ele se chama Arthur Cadana, é um fazendeiro cuja propriedade está aqui na região. Ele não está contratando gente para defender sua propriedade de bandidos ou escoltar cargas. Ele está contratando um assassino. E quando eu perguntei detalhes do alvo ele me disse que só daria caso eu aceitasse a missão.
- E então?
- Como assim e então?
- Quem é o alvo?
- Ora, eu não sei quem é o alvo!
- Você não falou pra ele que aceitava só pra saber quem era o alvo?
- E por que eu faria isso?
- Andrian! Pra saber quem era o alvo, ora bolas!!!
- Mas eu não iria aceitar independente de quem fosse o alvo. Pessoas não devem morrer simplesmente porque alguém paga por isso!
- Mas Andrian, pelo amor de todos os deuses, você mesmo me disse, as pessoas mentem. Você tem noção do quão difícil vai ser, agora, descobrir quem este filho da mãe quem que morra?
- Eu devo mentir então só porque os outros mentem também?
- Essa não é a questão. A teimosia é a questão!
- São meus princípios que você chama de teimosia?
- Não! A sua teimosia eu chamo de teimosia! Seus princípios são uma coisa bem bacana aí que você tem e te faz lutar vendado e de mãos atadas contra um monte de lixo que usa todas as artimanhas contra você!
- Eu achei que você estava entendendo alguma coisa depois de todo esse tempo viajando com você, mas você ainda considera que fazer o bem é um defeito. Eu realmente estou decepcionado com você, Meji.
- Imagina se soubesse de tudo...
- O que você disse?
- Não! Escuta aqui, fazer o bem não é um defeito, seu brutamontes teimoso! Mas você mesmo me contou, quando me arrastou do lugar que seria meu funeral, que o mundo é cheio de gente bosta que usa das coisas mais malignas pra ferrar com os outros. É muito bom e muito bonito que você queira ser esse arauto que as pessoas olhem e pensem, “nossa, parece que é o próprio deus agindo entre nós!”, mas acontece que você não é nenhum deus! Você é bom, tem um bom coração, você luta bem pra caramba, a sua espada é maneira, e é evidente que ainda existe algo mais que eu não sei explicar ou não consigo enxergar, mas sempre que eu vejo você se lançando de peito aberto no meio desses malditos eu te vejo se entregando como presa pra eles. Mas tem uma coisa, quando você pula no meio de um monte de bandido e eles te atacam pelas costas quando você manda eles se entregarem, você ta vestindo uma armadura de metal que segura boa parte das estocadas. Agora me explica uma coisa, quando você pular no meio de um monte de víboras invisíveis mentindo pra você, te enganando, e fazendo você acreditar que é tão bosta quanto eles, que armadura você vai vestir, ein?
Andrian respira fundo, olha pra cima escorando no encosto da cadeira e após uns instantes se levanta e para ao lado do gatinho, ainda afoito de tanto falar. O cavaleiro dá uma espécie de abraço desajeitado do garoto e fala, disfarçando um bocado de tristeza na voz:
- Você fala bastante mesmo Meji, mas eu entendi que está preocupado comigo – Ele pousa a mão direita fechada na mesa, ao lado da tigela de leite – Eu considero muito tudo isso que me disse, e levo isso no meu coração – Puxa a mão de volta deixando seu símbolo de Cura para o lican – Mas a armadura que visto nessas ocasiões é justamente não me render ao vil como eles fazem, é ser diferente, mesmo que isso signifique que estou vendado e de mãos atadas. Minha vida não está nas mãos deles, e quando Cura decidir que for a minha hora, eu quero ir com honra. Infelizmente isso não é possível ainda, e é isso que tenho tentado recuperar.
- Mas o que você...
- Guarde isso Meji. Irá te proteger – Dando as costas, já quase na porta da taverna – Continue o que começamos, você leva jeito pra herói.
- Continuar merda nenhuma, vai se ferrar – Resmunga mordendo o peixe euforicamente enquanto toma o leite de vaca, o pequeno felino, encarando o símbolo sagrado prateado do deus Cura ao lado da tigela – Vai se ferrar você também Joko, fica enchendo a minha cabeça quando os outros estão perto.
Com ouvidos atentos e dentro de um manto azul marinho encardido, alguém observava a conversa do outro lado da rua, seguindo o cavaleiro com os olhos.



sexta-feira, 15 de março de 2019

V - CONFRONTO


Com as mãos atadas e amarrado em vastos chumaços de palha, Mejimeal é arrastado pela turba em cada esquina da temerosa cidade de Melogma. Forçado a caminhar com o peso descomunal, apanhando e sendo praguejado no caminho, o pequeno felino sente até sua última gota de esperança sendo arrancada, junto dos maldizeres e do sangue que escorre pelas pernas, fruto das inúmeras chicotadas desajeitadas que levara pelo percurso.
Ao longo do dia a turba só faz crescer, os ânimos se renovam e mesmo com o revezar das pessoas que precisam satisfazer suas necessidades básicas, o lican gato tem a impressão clara de que nenhum habitante será poupado de ver o seu sacrifício pelo bem maior e pela prosperidade da fanática cidadela.
A noite é trazida por uma brisa gelada e um denso crocitar de aves, mas embora a lua não brilhe o suficiente para iluminar a praça e as ruas próximas, sobram cidadãos empunhando seus instrumentos agrícolas e tochas com suas chamas crepitantes, concedendo uma iluminação rubro carmesim à cena e garantindo um aspecto assustador às silhuetas dançantes no chão.
Aos poucos os brados insanos enfurecidos se abafam, tornando-se cochichos inquietos que reverberam pelas ruas afora da praça central. No centro do círculo formado pelos bancos de pedra, envolto numa quantidade exagerada de palha e amarrado com cordas e correntes ao enorme poste de madeira já chamuscado de outras fogueiras, Meji olha com pena para seus algozes, lembrando das perturbadoras palavras do espírito ancestral, Joko.
Um vão se abre no meio da turba, dando passagem ao alto, cabeludo, bem vestido e com trejeitos exageradamente pomposos Abissal cujo nome da cidade homenageia, o escolhido pelos cidadãos, produtores e servos, como o representante do Rei dentro da cidade. O regente, Melog.
Com uma voz aguda, rouca e arranhada, aos pigarros e pequenas tossidas, o regente dá início ao pronunciamento oficial do início do evento chamado Fogueira dos Malditos:
- Muito boa noite, povo da cidade de Melogma! É com imenso prazer e grande satisfação que venho por meio desta oportunidade, na estrita atribuição das funções que a mim foram conferidas, dar o primeiro passo rumo ao futuro. Em outros tempos já ouvi dizer que nenhum bom agouro pode vir de uma vida sendo ceifada. Há tempos tenho tomado isso como verdade e tomado cada vez mais cuidado com minhas ações e com os resultados delas. No entanto, esforçar-me-ei na destruição de uma verdade enganadora de minha mente, visto o bem comum. Elevar-vos-ei por meio de meu esclarecimento e queimar-me-ei junto dos bruxos se preciso for, pois com a minha verdade enganadora destruída, nada poderá ficar entre Melogma e seu glorioso sucesso. Este não é apenas um demônio com a aparência de uma mistura de um felino e um homem pequeno. É o símbolo do que acontece com o mal em nossa terra. É a verdade enganadora de que através de uma morte não pode haver progresso sendo destruída. Portanto, convidar-vos-ei, a acender a pira, juntos como sempre, e a aproveitar os gritos do mal sofrendo, pois a derrota do mal, é a vitória que tanto queremos e a garantia do progresso que tanto esperamos!!!
- Com qual autoridade você acusa, dá a pena e executa um devoto do demônio, Abissal? - Rompendo os urros e elogios efusivos da turba, interrompe a cerimônia com a grave voz de trovão, Andrian Mocer, numa esquina atrás da turba, encarando a praça com sua enorme espada de aço negro em punhos. Aos poucos as pessoas passam a falar cada vez mais baixo, voltando seus rostos na direção do encorpado cavaleiro, timidamente empunhando suas ferramentas e com os corações repletos de confusão com doses de medo.
Pé ante pé, o cavaleiro atravessa devagar a turba até uma distância próxima do centro da praça, onde o galante regente aguarda disfarçando o incômodo. Sem suportar o tilintar reverberante da armadura do cavaleiro em meio ao silêncio provocado por sua presença, o regente se põe a discursar novamente:
- Ora, meu caro e imponente seja lá quem for, eu sou Melog, o regente dessa cidade e a pessoa a qual seu nome homenageia. Das terras de onde vêm isso não significa algo pra você?
- Nas terras dos filhos de Cura, caso não saiba, nem mesmo o Rei possui autoridade sobre as vidas alheias – responde encarando o regente, sem alterar a velocidade dos passos – Seria no mínimo constrangedor se eu precisasse lembrar ao regente quais as suas funções.
- Ora seu insolente! Vou precisar acionar as forças militares dessa cidade? Como ousa questionar as atividades da coroa em exercício? Com que autoridade o faz? – Perdendo a calma, esbraveja o abissal.
- Falo com a autoridade da única pessoa nos arredores a empunhar uma arma de verdade – As demais pessoas se afastam e algumas deixam suas ferramentas caírem – E se conhece bem os rumores, por se tratar de uma lâmina de aço negro, deve entender do que se trata.
- E daí que pode ser um cavaleiro juramentado? E daí que pode ter conseguido essa porcaria matando um? Isso não prova nada! Absolutamente nada! Onde estão os inquisidores? Ao menos um inquisidor?
- É exatamente essa a pergunta que eu faço, regente Melog, onde está ao menos um inquisidor? Existem somente seis pessoas em toda Heldergaid que possuem o poder que parece pressupor que tenha, e ainda assim, cada um deles referente a um assunto bem específico – Chega à distância de um passo do regente, o cavaleiro juramentado, quando acaba de falar.
- O que você acha que está fazendo aqui, forasteiro? As coisas acontecem assim há anos, as pessoas não suportam e nunca suportaram bruxaria e sempre resolveram seus problemas com a fogueira, porque se intrometer no que não lhe diz despeito? – Um pouco mais controlado, o abissal tenta convencer o cavaleiro.
- Os inquisidores foram nomeados justamente para que equívocos como esse parassem de acontecer. Para que diabruras irreparáveis cessassem. Ou o que pretende fazer, caso descubra que a pessoa queimada era inocente? Qual o método que você utilizou para ter tanta certeza que o rapaz é um bruxo, é o mal ou o enviado do demônio?
- OLHE PARA ELE, FORASTEIRO!!! UMA MISTURA DE GATO COM GENTE!!! – Perdendo completamente a paciência, Melog gesticula efusivamente apontando para o desanimado felino amarrado ao poste.
- Se a aparência for o critério, alteza, creio que as pessoas concordariam que há outra pessoa cuja aparência lembra o que o vulgo crê ser o demônio.
As pessoas discretamente voltam a pegar suas ferramentas e se dirigir para suas casas. Aos poucos as tochas vão se apagando quando um relâmpago rasga o céu sobre suas cabeças anunciando uma provável chuva, o que afugenta os demais. Ainda de pé e sem ação, Melog olha para uma direção fixa como se enxergasse ainda mais além enquanto Andrian guarda sua enorme espada de aço negro e começa a soltar o garoto.
- Sabe forasteiro, as pessoas precisavam me ver sem ação após o seu discurso ridículo. Elas precisam ter certeza que você e essa aberração saíram daqui em segurança pra que eu não precise começar do zero novamente, mas isso não acabou. Isso definitivamente não acabou e eu vou me lembrar de você – no final da frase, os olhos de Melog brilham num vermelho vivo, sua pele, outrora avermelhada se acinzenta e sua voz fica grave e mais intensa – Será muito melhor para você se se lembrar do meu nome.
Carregando o pequeno felino nos ombros, aparentemente, sem fazer o menor esforço, o cavaleiro responde o regente sem encará-lo:
- Esse povo não será refém para sempre, e até o dia que eu voltar, você com certeza, já estará com o meu nome na ponta da sua língua, Melog!
Amanhece mais uma vez, o calor do sol incidindo diretamente no rosto do lican felino faz com que desperte, sentado, escorado em uma árvore na beira da estrada. Curativos em suas feridas, e nem sequer sinal de dor. Com uma rápida olhada ele vislumbra o cavaleiro que o libertou, sentado ao pé da árvore ao lado, descascando uma fruta com uma faca pequena.
- Moço fodão. Obrigado. Eu meio que me sinto um idiota sabe. Contei tudo pra aquele lazarento e ele me fodeu. Deve ser tudo mentira o lance da família, cachorro, tartaruga. E eu não fiz nada pra aquele desgraçado – Enquanto fala, abusando de palavras fortes, o gato tenta disfarçar as lágrimas que escorrem pelo seu rosto – Eu... eu só tava fugindo porque... ah... mentiram pra minha família e tentaram me matar... daí esse filho da... - Andrian o interrompe:
- Deixa eu te falar uma coisa, criança. As pessoas... Elas mentem. E por mais que uma mentira às vezes possa ser inofensiva, esse é o maior mal que uma pessoa pode fazer a outra. E as pessoas fazem isso com frequência. É difícil não se abalar pela mentira dos outros, pela traição, mas só depende de nós deixar que isso nos afete. Se eu fosse te dar um conselho, bom, seria para que você confie como se nunca tivesse sido traído e que seja confiável tanto quanto puder. Você vai sofrer, é bem verdade, mas valerá a pena – Andrian parte a fruta ao meio e joga metade pro felino, que a apanha no ar com uma facilidade impressionante – A propósito, Andrian Mocer, prazer. Eu também estou fugindo.
- Nhéééél, Mejimeal – Se espreguiça como não fazia há um bom tempo – mas pode me chamar de Meji... – Com um esforço enorme, o pequeno não responde Joko e começa a pensar em como conseguir todas as coisas que tinha em sua bolsa, sobretudo, sem que Andrian saiba.



sexta-feira, 8 de março de 2019

IV - O PREÇO DO PROGRESSO


Após semanas na estrada, rumo ao que julgava no início ser um lugar seguro, o lican felino magricela coleciona desconfiança ao longo do caminho após ouvir algumas conversas sobre reviravoltas nas tribos das bordas dos reinos. Embora diversas vezes muito tentado a se aproximar e iniciar uma conversa, o gatinho conseguiu ponderar suficientemente em todas as vezes e achou mais viável não surgir em frente às pessoas das quais acabara de furtar as provisões com algumas perguntas. Adormece sobre um galho encoberto próximo a uma cidade cujo nome não conseguiu ler corretamente em função da diferença do seu idioma nativo para o idioma do reino dos filhos de Cura.
Com o mesmo capricho desde que Meji era apenas um filhote, os raios de sol passam por entre as folhas que encobrem o galho onde adormecera aquecendo incomodamente seu rosto e com o desequilíbrio e mau jeito de costume, o pequeno felino se ajeita soltando seu miado e se espreguiçando no meio da estrada.
Alguns passos cabisbaixos a frente e uma carruagem de porte médio, com apenas dois cavalos puxando, o alcança. O condutor, que viaja numa parte mais elevada da carruagem bem próxima dos animais, remove seu chapéu de palha educadamente cumprimentando o pequeno felino, que desajeitadamente responde ao cumprimento da forma mais educada que consegue.
- Muito boa tarde, companheiro. Aceita uma carona? – Com um sotaque bastante curioso, o rechonchudo condutor tenta um início de conversa.
- Boa... dia... quer dizer bom... tarde... Na verdade... Bom, eu adoraria uma carona, meus pés, e mãos, e costas, e corpo todo estão até doendo do cansaço profundo de uma viagem longa e desgastante, meu bom senhor, de bonito bigode, diga-se de passagem, mas acontece que as pessoas normalmente não se dão muito bem com licans. Sabe, pessoas da grande floresta com esses aspectos de bicho. Sobretudo gatos. Quanto mais licans gato. E no caso eu sou um lican gato, e você é uma pessoa então, muito provavelmente, você não gosta nem de lican, nem de gatos, nem de licans gato, e eu sou um lican gato. Sou muito legal, é bem verdade, mas ainda assim, sou um lican. E um gato... –Embala numa frase contínua, o pequeno lican, até que o condutor se dá conta do que houve e decide interrompê-lo.
- Deixe de leseira, moço. Suba logo em minha carroça e descanse suas pata até chegar na cidade po! – De forma imperativa, o condutor, fazendo com que Mejimeal, discretamente, suba na carruagem –Lander, prazer – Fala estendendo a mão direita para cumprimenta-lo novamente.
- Mejimeal, mas pode chamar só de Meji – Imita o gesto do condutor, o felino, ficando logo em seguida cabisbaixo – Era assim que meus amigos me chamavam...
- E o que aconteceu? Por que não chamam mais assim?
- Eles só não chamam mais... Eu meio que, fugí sabe. Deu problema. Eu deixei todo mundo dormindo e fugi!
- Bruxaria? – Pergunta Lander, com os olhos arregalados, ao lican.
- Que... Não... Planta... Cansaço... Sono... Joko, acho que a gente se ferrou me ajuda Joko, caramba vamos morrer socorr – Se apavora e começa a falar sozinho enquanto apalpa o corpo todo procurando por algo até ser interrompido por um tapa nas costas, provavelmente com menos força do que um ataque, mas não o bastante para os parâmetros de Meji.
- Eu tô brincando maluco! – Interrompe às risadas, o homem – Eu lá quero saber se você mexe com essas coisa ou não? Não ferrando comigo ou com a minha carroça você que se dane... – E continua rindo
Um pouco sem graça, o lican felino retoma o fôlego e aos poucos se recompõe ao lado do condutor, que começa a considerar o pequeno garoto como um amigo. Vendo a preocupação do garoto, Lander o adverte:
- Mas uma coisa é bem verdade garoto, evite conversar com o Joko, ou fazer a sua coisa mágica dentro da cidade que vamos entrar. Eles é bem antigo e gosta de queimar bruxa. Pra eu falar coisa assim é porque eles é chato mesmo. Toma cuidado tá. Eu sou um bocado conhecido aqui, mas só tô inteiro porque sou esperto. Seja esperto também! – Pisca de forma amigável encarando o gatinho assustado.

- Beleza amigão, mas... Como você sabe do Joko? Você vê ele também? Joko, você vê o gordinho? – Começa discretamente até se soltar um pouco mais e falar normalmente.
- Você que falou com ele, Meji. Você não é o primeiro maluco pra quem eu dou carona não...
A conversa flui amigável, Lander conta há quanto tempo trabalha como mercador somente na região norte de Heldergaid devido ao perigo dos ataques nas estradas do oeste e do sul, conta de sua família, sua esposa, seus três filhos, dois cachorros, um gato e uma tartaruga, sua pequena casa e uma fazenda razoável que plantam apenas para o próprio sustento.
Meji acompanha a conversa contando de todos os costumes da tribo dos Cães e Gatos, do seu amigo Gigaru, que nasceu no mesmo dia e na mesma hora que ele, de como ele gostava do seu amigo e não fazia idéia disso enquanto podia vê-lo todos os dias e conta também de Joko, o que sua família chama de amigo imaginário, mas que ele sabe se tratar de um espírito ancestral tão sábio quanto o deus fera e tão poderoso quanto os deuses dragões.
No fim da tarde, a carruagem adentra a cidade que seu amigo Lander o anuncia, conforme o costume dos visitantes e moradores, após contar toda a história do enriquecimento de queda dos vários senhores da cidade, ainda que o garoto lican não tenha dado a menor importância.
Se despedem desejando boa sorte e Meji imediatamente se distrai com o aglomerado de pessoas curiosas com sua aparência incomum, forçando interações e aproveitando das graças que o felino não perde a oportunidade de fazer, ficando até o escurecer na mesma praça, conversando com adultos curiosos e brincando com as crianças até que, aos poucos, todos se recolhem aos seus domicílios.
Sem nenhum tostão e sem companhia, Meji decide explorar a cidade, passeando em rua após rua, observando as casas com base de pedras, paredes de madeira e telhados de palha. Algumas com telhado de barro seco. A terra batida do chão já encardira seus pelos dos pés, mesmo através das botas. Encantado com as diferentes construções e com a forma como as ruas divergem da estrada pela qual viajou mais de dez dias seguidos, o pequeno lican felino adormece num grande cesto de feno num estábulo aberto próximo de duas casas bem grandes.
Um ardor peculiar em seu rosto o desperta, mas não o agradável ardor do sol matinal que parecia esquivar caprichosamente entre as folhas quando dormia nos galhos. Mejimeal fora acordado com um tapa de mão aberta de uma senhora de meia idade, cabelos loiros, quase brancos, e pele um pouco acinzentada. O pequeno felino já estava amarrado, mãos e pés, e cercado por uma multidão que bradava por justiça.
Atordoado, tentava se lembrar do sonho onde Joko o anunciava que uma cidade inteira findaria em cinzas caso fosse levado à fogueira. Diante do nervosismo, das vagas memórias e dos ânimos da plebe, o gato não consegue sequer pensar num bom início para um argumento sem que pareça ma ameaça.
No meio da turba, Meji reconhece Lander e grita por ajuda desesperadamente, tomando a atenção de algumas pessoas que pareciam indiferentes aos manifestos desesperados dos acusadores. Após algumas tentativas, e quando a voz do jovem lican já começava falhar, Lander muda o trajeto e passa a caminhar ao encontro do felino. Baixo o suficiente para gerar dúvida aos mais afastados, mas alto o suficiente para que chegue ao seu amigo, Mejimeal conta:
- Lander, socorro, ajuda, deuses, foco, socorro. Joko, ele me falou, fogo cinza, pessoas, arroz. Não, arroz não. Calma Meji, calma Meji, se você se desesperar você vai morrer. Se não se desesperar vai morrer também, mas pelo menos não estará desesperado. Me ajuda Lander, o Joko me disse, que se eu for pra fogueira a cidade vai sumir no fogo. Vai queimar. Todo mundo, por favor Lander, ajuda eu, ajuda as pessoas... – Desesperado, vai se acalmando enquanto fala ao passo que Lander se aproxima e quando Lander fica frente a frente do lican felino, todas as pessoas se silenciam, Lander retira uma mordaça do bolso e amarra na boca do felino.
- A taverna, meus caros, foi apenas um aviso. Esse bruxo das terras dos filhos de Fera veio nos trazer desgraça e degradação. Nossas colheitas ruins, nossa cerveja azeda e nossa carne que apodrece mesmo com sal, são apenas agouros anunciando a chegada do mal. E o mal veio de forma clara, nos desafiando, na forma de um demônio, meio gato, meio gente – Sem acreditar no que ocorre, Meji desiste de lutar ou de convencer a turba, amolecendo os braços e pernas, deixando também as lágrimas escorrerem pelo seu rosto combalido, ao passo que Lander se empolga e passa a gesticular enquanto discursa – Por isso, povo de Melogma, eu os convido a dar o primeiro passo rumo a um futuro próspero. Eu os convido à fogueira dos malditos hoje à noite! Nenhum bruxo jamais atrapalhará nosso progresso novamente!


sexta-feira, 1 de março de 2019

III - CÃES E GATOS


Amanhece na pacata Tribo dos Cães e Gatos, um lugarejo ao norte da famosa metrópole Palácio das Copas, na Grande Floresta. Um dia, num passado distante chegou a se tornar uma cidade próspera, mas para o bem de seus fiéis habitantes, os licans gato e licans cachorro, são tempos que não voltam mais.
O som alto e desesperado de uma infinidade de pássaros sendo assustados pelos latidos impacientes dos licans caninos contrasta com a preguiça e calma dos licans felinos, que se espreguiçam sobre os galhos, nada dispostos a se juntar aos seus companheiros de tribo. Os raios de sol passam caprichosamente por entre as folhas largas das árvores mais altas acertando em cheio o rosto mais preguiçoso entre os licans gato. De pelo acinzentado com uma mancha negra em volta do olho esquerdo, Mejimeal tenta se ajeitar sobre seu galho, mas se estabaca no chão, aos pés de Gigaru, seu não tão amigo lican cachorro.
- “Nhééél”... Bom dia Gigaru... disposto cedo já não é mesmo? – Pergunta o gatinho magrelo enquanto ajeita suas botas, luvas, o pequeno capuz e sua espada demasiado pequena.
- “Grrrr” Sempre nos atrasando né Meji. Não só você – Esbraveja o cão raivoso enquanto aperta sua lança e aguarda um curto espaço de tempo, obviamente sem resposta do gato – Meji, se mexa, hoje você tá na caça comigo, ta esperando o que?
- Poxa Gigaru, desculpa mesmo, eu não estava dormindo. Estava falando com o Joko, ele estava falando que hoje eu ia sair da tribo, mas daí a bola de luz no céu esquentou meus olhos e me jogou com força no chão, que é onde eu estava quando você me acordou latin... uivando bravamente como os mais bravos caninos das estepes longínquas... – Desembestava a falar, o gato, até ser interrompido por Gigaru.
- Tá bom ta bom. Chega! Você nunca pega sua lança e leva sempre esse palito de ferro mesmo. Vamos logo!
Totalmente contrariado, Mejimeal parte com seu parceiro de caça, Gigaru floresta fechada adentro, confiando totalmente nos sentidos do cão. Durante as quase duas horas que percorrem dentro da floresta, o pequeno felino só parava de falar quando era repreendido pelo cachorro caçador, até que Meji fica pra trás por avistar algo muito chamativo.
- Sim, Joko, eu achei, e olha que eu nem estava procurando – o gato fala sozinho ao passo que se curva e se esgueira atrás de uma árvore – Eu também acho muito bonito, Joko, tanto por fora quanto o barulho. Música, música... – Devaneia enquanto continua se esgueirando para perto da maravilha – Eu só não entendo como isso vai fazer sentido no futuro, Joko, mas realmente é muito bonito!
Um latido alto corta bruscamente o clima com um grito preocupado e de voz roca e canina:
- CUIDADO, MEJI!!! UMA SERPENTE!
Desatento, o gato vira a cabeça lentamente pra direção do grito e avista o enorme lican canino pulando sobre ele. Tudo fica muito turvo, ambos rolam algumas cambalhotas na grama e na terra quando Meji acerta as costa em uma árvore e já se postura com as quatro patas no chão, pelos eriçados e procurando alguma coisa olhando para todos os lados.
Gigaru há alguns metros dele, desmaiado, com uma serpente verde claro com a boa escancarada, os dentes fincados em seu braço e parte do corpo enrolada no mesmo braço.
Meji se espanta, retoma a postura e corre para a árvore onde estão caídos:
- Oh por Fera, mas o que foi que houve aqui?! – Ele pega o chocalho da cauda da serpente com ambas as mãos, segura o corpo da serpente com o pé e puxa até soltar – Peguei Joko. Não sei direito como aconteceu, mas está aqui...- Fala enquanto caminha, já de costas para o cão desacordado – O que? Gigaru? Joko, calma, não tô entendendo nada... Ah, o Gigaru foi mordido... Isso mesmo! Como assim urgente? COMO ASSIM EU CARREGÁ-LO?
Ao anoitecer, já de volta na tribo, todos reunidos na grande tenda, a casa de Zartano, único humano da tribo, aguardam a chegada de Mejimeal para o interrogatório, e possível punição.
O gato magricela entra na tenda lotada esbarrando em todos e incomodando mais com os excessivos pedidos de desculpa até que toma a posição central e se põe a falar:
- Tenho uma notícia boa e uma ruim... como todo mundo escolhe a boa primeiro, bem, como sou parceiro de caça do Gigaru, amanhã não precisarei ir pra caça... – Após um constrangedor momento de silêncio e algumas feições de desaprovação, o gatinho volta a falar – E a ruim é que ele não morreu e logo vai estar latindo pra gente... Tudo bem, eu não agradei, eu nunca agrado, não tem problema, podem começar, sou todo ouvidos, eu vim aqui para escutar o que vocês tem a dizer, se tem uma coisa que eu vim fazer aqui hoje é escutar, se alguém me perguntasse “Meji, o que você está indo fazer” eu diria “escutar”, Astoro mesmo me perguntou no caminho... – Como de costume, começou a falar sem parar até que o próprio Zartano o interrompeu:
- CHEGA MEJIMEAL!!! – Um grito poderoso do homem cabeludo e musculoso quase velho – Tem noção do risco que você traz a nós com sua imaturidade e com sua loucura?
- Em minha defesa, devo dizer que me acho deveras maduro, e quanto à loucura Joko discorda. É sempre bom ter uma opinião vinda de fora né... – Fala olhando para baixo, brincando com os dedos e com as pontas dos pés juntas.
- Joko – Zartano começa a falar e se levanta – O espírito da fera ancestral próxima do deus Fera que usa a sua pessoa como forma de transferir seus conhecimentos à nossa humilde estupidez? – Pergunta entoando a voz numa espécie de ensaio de sarcasmo.
- Com relação à humilde estupidez eu não sei se concordo com a parte que diz... humilde – Retruca falando baixo, discretamente e levantando o indicador da mão direita.
- Você acha graça, Mejimeal. Você acha graça num companheiro de tribo enfermo e sofrendo? Só porque ele é de uma raça da qual você não pertence? – Engrossa novamente Zartano se aproximando do pequeno felino.
- Diz o único humano na tribo dos CÃES e GATOS! – Fala se afastando do Zartano estendendo sua mão esquerda na direção dele enquanto mexe na bolsa com a mão direita.
- Você questiona a minha liderança sem pedir por uma luta? – Zartano fala com Mejimeal, embora olhando e esperando incitar os demais.
- Nananinanão... Nem questionar a liderança, nem quero abrir mão da luta... er... quer dizer... AH! Achei, era isso que o Joko mandou eu pegar – Tira de dentro da bolsa o chocalho da serpente e joga para Zartano – Bonito né?
Todos se levantam e sacam suas armas com ódio aparente do pequeno gato, então, Zartano com semblante vitorioso se põe a falar calmamente novamente:
- Então você arriscou a vida de um companheiro, um parceiro da caça por um chocalho?
- Na verdade verdadeira mesmo, eu ia pegar a cobra sozinho, ele nem precisava se machucar, mas ele ficou com medo de eu me machucar sabe, achou que eu era indefeso e no lugar de me atacar cercado dos meus irmãos jogando todos contra mim, como a cobra, não, o Gigaru, ele pulou pra me salvar. Foi isso – Extremamente nervoso e confuso, Meji vai falando e procurando um espaço longe dos demais onde pareça estar mais seguro.
- Isso é tudo o que você tem contra o único daqui que foi capaz de livrar todos vocês da ameaça dos desgarrados de Kilnarak. ISSO É TUDO O QUE VOCÊ TEM CONTRA O SALVADOR DOS CÃES E DOS GATOS DAS PRESAS DOS VAMPIROS???
- AH! É ISSO! Obrigado Joko, agora eu sei o que fazer – Meji se empolga e fala olhando para os lados como se visse alguém perto dele, toma fôlego, pega uma bolsa pequena de couro de dentro de sua bolsa e mostra um símbolo que significa Zartano - Conhecem esse nome certo?
Os cães e os gatos se entreolham confusos e murmuram entre eles.
- É o meu nome, mas quem disse que é minha? – Tenta se defender precocemente o humano.
- É que eu tava pensando: Aqui a gente não usa moedas né?! De lugar nenhum, muito menos de Kilnarak. A gente caça as coisas e tal. Eu tava pensando também, de vez em quando ainda some algum amigo ou parente nosso né?! Eu acho estranho. Aliás, eu nem quero ser o próximo a sumir, mas eu vou sumir...
- Onde você quer chegar seu insolente? MATEM ELE – Ordena Zartano
Enquanto todos empunham suas armas e apontam, ainda que confusos, para o pequeno felino, ele faz sinal de rendição, o que faz com que esperem mais um momento.
- Olha, vou sentir saudades de vocês. Menos dos que latem, mas vou sentir saudades também – Abre a pequena bolsa com o nome Zartano e deixa cair ao chão diversas moedas de ouro de Kilnarak. No momento de espanto, quando Zartano toma em punho a lança do lican mais próximo, e antes que pudesse atacar, Mejimeal retoma a fala – Seria bom conversarem com ele assim como fizeram comigo, mas quando acordarem. “Cypath”!!!
Do chocalho da cobra explode uma fumaça esverdeada que toma toda a tenda e antes que pudesse ter certeza de que ela colocara alguém pra dormir mesmo, o pequeno felino já estava longe, na estrada larga rumo as cidade do norte do reino de Heldergaid.