Após uma longa viagem
que já somava mais de uma semana, o jovem Andrian adentra em uma cidadela cuja
placa há alguns metros indicava a entrada discretamente. O chão de terra
batida, as paredes das casas de barro e os telhados de palha deixavam claro não
se tratar de nenhuma cidade grande ou sequer com pretensões de desenvolvimento.
Ainda que poucas
pessoas estivessem nas ruas, levando carroças com barris de um lado pro outro,
jarros d’água em punhos e sacos pesados sobre as costas, o jovem conseguiu
abordar um homem de vestes não tão maltrapilhas que também não estava ocupado:
- Com a sua licença
meu bom homem, venho de longe e gostaria de um lugar para fazer uma refeição e
descansar. O senhor saberia me indicar? – Fazendo uso da cordialidade que tanto
praticou em Gorovir
- Muito bom dia,
santo paladino de Cura. A menos que se incomode, eu faria muito gosto se
pudesse oferecer um prato quente e uma cama pra você! – Empolgado, o homem fala
enquanto cumprimenta com um abraço desajeitado – A propósito, Keilin. E você,
como se chama?
- Andrian... E eu
ficaria muito honrado, Keilin.
Sem falar muito, o
abatido soldado de Cura acompanha
Keilin até a sua casa, que embora ficasse há apenas alguns minutos, fez com que
Andrian sentisse o peso de outra viagem de uma semana.
Keilin quase não
respirou, fazendo questão de contar tudo o que houve na cidade há pelos menos
cinco anos. Embora Andrian tenha tomado muito cuidado com suas respostas para
que a conversa não se prolongasse, Keilin parecia ignorar e continuar falando.
Antigamente, o senhor
dono dessas terras documentou um acordo com a coroa para recolher uma quantia
razoável de impostos em troca de uma guarda oficial treinada e equipada para
garantir a segurança das pessoas. A cidade não é bem posicionada com relação a
proximidade de rios, nem com relação ao trajeto dos mercadores, mas os produtores
de grãos e cervejas da região são os melhores, o que fez com que esse senhor
tenha construído casebres para os servos dos produtores, tavernas para hospedar
mercadores e grandes mansões com extensos galpões para garantir o armazenamento
seguro de sua mercadoria.
Parecia tudo ir bem,
mas quando os primeiros produtores ficaram mais ricos que o senhor da cidade
e compraram as mansões outrora alugadas, decidiram bancar sua segurança por
conta, e não mais pagar os impostos que ele cobrava. Pra não dever para a
coroa, o senhor aumentou os impostos dos outros e passou a cobrar impostos dos
servos também, o que fez com que, quem fosse capaz, deixasse a cidade,
aumentando o desespero dele.
Com a diminuição da
arrecadação, só restou a alternativa de barganhar com a coroa, e o policiamento
passou a diminuir na mesma proporção, aumentando a insatisfação de quem pagava
impostos cada vez mais altos, e aos poucos o senhor foi vendendo mansão após
mansão, terras após terras, até que finalmente ficou sem nem um tostão e passou
a trabalhar para os produtores, os novos senhores da cidadela.
O acordo com a coroa
foi renovado, os senhores pagavam impostos mais módicos ao rei devido à
segurança das estradas e eles se encarregavam da segurança das pessoas dentro
das cidadelas. Todos ficaram felizes tendo mais segurança e menos ouro para o
bolso dos nobres. Foi o que eles pensaram a princípio.
Os novos senhores
mantinham a guarda sempre como uma espécie de segurança pessoal. Mantinham
contatos com seus mercadores, traziam mantimentos somente para as próprias
propriedades, e o que não queriam, revendiam a preços exorbitantes aos donos
das tavernas. Seus servos ficavam felizes ao serem bem remunerados pelo
trabalho, mas tudo o que compravam na cidadela era muito caro e mal dava pras
suas despesas.
Estavam todos, exceto
os senhores, insatisfeitos, mas pelo menos não pagavam impostos. Até então.
Duas safras ruins
foram o suficiente para que os novos senhores passassem a demitir sua guarda e
começar a cobrar impostos dos servos. A coroa não lhes cobrava muito, mas eles
estavam acostumados com um padrão que safras ruins não seriam capazes de
garantir.
Em pouco tempo,
servos e guardas demitidos se uniram. Eles não queriam deixar o lugar. Eles
queriam que seus senhores fizessem a única coisa a qual se comprometeram. Que
lhes pagassem um salário digno e garantissem a segurança.
Organizaram um
levante e partiram para as mansões dos senhores. Os três primeiros, dois
produtores de grãos e um cervejeiro já haviam deixado a cidade. Sequer levaram
as roupas.
O quarto senhor, no
entanto, esperou para negociar com a turba. Melog, um abissal vindo de Xedomuor. Ele ofereceu sociedade com
aqueles que quisessem, juntos, reerguer a cidadela e assumir as terras de quem
havia debandado. E assim Melogma, como é chamada até hoje, seguiu.
As safras ruins que
ocorreram depois de Melog foram atribuídas à bruxaria. Mercadores passaram a
visitar não só os produtores, mas as tavernas e os bazares também. A coroa tem
enviado não só soldados, mas professores e clérigos para ajudar a cidadela. E
embora todos tenham de contribuir com os impostos, mesmo sem perspectiva
nenhuma da cidade crescer, as pessoas parecem satisfeitas com o trabalho de
Melog.
- Então o Abissal
bondoso salvou a nação e acusa de bruxaria quando as coisas dão errado? Porque
não estou surpreso? – Andrian decide se manifestar já no interior da casa
simplória de Keilin, enquanto o anfitrião prepara a comida.
- Não acho que ele
seja bonzinho não. Foi é esperto. Devia eu ter topado ser sócio e ganhar
terras. Hoje seria um senhor! – Retruca Keilin enquanto traz os pratos.
- E as coisas vão bem
no momento? Digo... com essas atitudes e esses valores sendo recolhidos? –
Questiona meio sem jeito o paladino enquanto come.
- Ah, sim, demais! –
Empolgado, Keilin chega a pegar fôlego para falar – Ainda mais que encontramos
o responsável pela última bruxaria. Ele será queimado ao anoitecer!
Engolindo seco,
Andrian pensa no seu dever e não consegue disfarçar a expressão, mesmo diante
da cordialidade do anfitrião. De pé, ele mostra, no seu braço esquerdo, a marca
do seu juramento partida e impõe: