sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

II - MELOGMA


Após uma longa viagem que já somava mais de uma semana, o jovem Andrian adentra em uma cidadela cuja placa há alguns metros indicava a entrada discretamente. O chão de terra batida, as paredes das casas de barro e os telhados de palha deixavam claro não se tratar de nenhuma cidade grande ou sequer com pretensões de desenvolvimento.
Ainda que poucas pessoas estivessem nas ruas, levando carroças com barris de um lado pro outro, jarros d’água em punhos e sacos pesados sobre as costas, o jovem conseguiu abordar um homem de vestes não tão maltrapilhas que também não estava ocupado:
- Com a sua licença meu bom homem, venho de longe e gostaria de um lugar para fazer uma refeição e descansar. O senhor saberia me indicar? – Fazendo uso da cordialidade que tanto praticou em Gorovir
- Muito bom dia, santo paladino de Cura. A menos que se incomode, eu faria muito gosto se pudesse oferecer um prato quente e uma cama pra você! – Empolgado, o homem fala enquanto cumprimenta com um abraço desajeitado – A propósito, Keilin. E você, como se chama?
- Andrian... E eu ficaria muito honrado, Keilin.
Sem falar muito, o abatido soldado de Cura acompanha Keilin até a sua casa, que embora ficasse há apenas alguns minutos, fez com que Andrian sentisse o peso de outra viagem de uma semana.
Keilin quase não respirou, fazendo questão de contar tudo o que houve na cidade há pelos menos cinco anos. Embora Andrian tenha tomado muito cuidado com suas respostas para que a conversa não se prolongasse, Keilin parecia ignorar e continuar falando.
Antigamente, o senhor dono dessas terras documentou um acordo com a coroa para recolher uma quantia razoável de impostos em troca de uma guarda oficial treinada e equipada para garantir a segurança das pessoas. A cidade não é bem posicionada com relação a proximidade de rios, nem com relação ao trajeto dos mercadores, mas os produtores de grãos e cervejas da região são os melhores, o que fez com que esse senhor tenha construído casebres para os servos dos produtores, tavernas para hospedar mercadores e grandes mansões com extensos galpões para garantir o armazenamento seguro de sua mercadoria.
Parecia tudo ir bem, mas quando os primeiros produtores ficaram mais ricos que o senhor da cidade e compraram as mansões outrora alugadas, decidiram bancar sua segurança por conta, e não mais pagar os impostos que ele cobrava. Pra não dever para a coroa, o senhor aumentou os impostos dos outros e passou a cobrar impostos dos servos também, o que fez com que, quem fosse capaz, deixasse a cidade, aumentando o desespero dele.
Com a diminuição da arrecadação, só restou a alternativa de barganhar com a coroa, e o policiamento passou a diminuir na mesma proporção, aumentando a insatisfação de quem pagava impostos cada vez mais altos, e aos poucos o senhor foi vendendo mansão após mansão, terras após terras, até que finalmente ficou sem nem um tostão e passou a trabalhar para os produtores, os novos senhores da cidadela.
O acordo com a coroa foi renovado, os senhores pagavam impostos mais módicos ao rei devido à segurança das estradas e eles se encarregavam da segurança das pessoas dentro das cidadelas. Todos ficaram felizes tendo mais segurança e menos ouro para o bolso dos nobres. Foi o que eles pensaram a princípio.
Os novos senhores mantinham a guarda sempre como uma espécie de segurança pessoal. Mantinham contatos com seus mercadores, traziam mantimentos somente para as próprias propriedades, e o que não queriam, revendiam a preços exorbitantes aos donos das tavernas. Seus servos ficavam felizes ao serem bem remunerados pelo trabalho, mas tudo o que compravam na cidadela era muito caro e mal dava pras suas despesas.
Estavam todos, exceto os senhores, insatisfeitos, mas pelo menos não pagavam impostos. Até então.
Duas safras ruins foram o suficiente para que os novos senhores passassem a demitir sua guarda e começar a cobrar impostos dos servos. A coroa não lhes cobrava muito, mas eles estavam acostumados com um padrão que safras ruins não seriam capazes de garantir.
Em pouco tempo, servos e guardas demitidos se uniram. Eles não queriam deixar o lugar. Eles queriam que seus senhores fizessem a única coisa a qual se comprometeram. Que lhes pagassem um salário digno e garantissem a segurança.
Organizaram um levante e partiram para as mansões dos senhores. Os três primeiros, dois produtores de grãos e um cervejeiro já haviam deixado a cidade. Sequer levaram as roupas.
O quarto senhor, no entanto, esperou para negociar com a turba. Melog, um abissal vindo de Xedomuor. Ele ofereceu sociedade com aqueles que quisessem, juntos, reerguer a cidadela e assumir as terras de quem havia debandado. E assim Melogma, como é chamada até hoje, seguiu.
As safras ruins que ocorreram depois de Melog foram atribuídas à bruxaria. Mercadores passaram a visitar não só os produtores, mas as tavernas e os bazares também. A coroa tem enviado não só soldados, mas professores e clérigos para ajudar a cidadela. E embora todos tenham de contribuir com os impostos, mesmo sem perspectiva nenhuma da cidade crescer, as pessoas parecem satisfeitas com o trabalho de Melog.
- Então o Abissal bondoso salvou a nação e acusa de bruxaria quando as coisas dão errado? Porque não estou surpreso? – Andrian decide se manifestar já no interior da casa simplória de Keilin, enquanto o anfitrião prepara a comida.
- Não acho que ele seja bonzinho não. Foi é esperto. Devia eu ter topado ser sócio e ganhar terras. Hoje seria um senhor! – Retruca Keilin enquanto traz os pratos.
- E as coisas vão bem no momento? Digo... com essas atitudes e esses valores sendo recolhidos? – Questiona meio sem jeito o paladino enquanto come.
- Ah, sim, demais! – Empolgado, Keilin chega a pegar fôlego para falar – Ainda mais que encontramos o responsável pela última bruxaria. Ele será queimado ao anoitecer!
Engolindo seco, Andrian pensa no seu dever e não consegue disfarçar a expressão, mesmo diante da cordialidade do anfitrião. De pé, ele mostra, no seu braço esquerdo, a marca do seu juramento partida e impõe:
- Eu preciso ver isso. Se não quiser me levar lá eu só o aconselho a não tentar me impedir.

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